3. Os primeiros Forais antigos do Algarve – D. Afonso III

A soberania total do Rei de Portugal sobre o território do Algarve foi algo difícil de ser conseguida numa contenda com o Rei de Castela e Leão, na sequência da ação militar contra o domínio muçulmano representado pelo rei de Niebla e emir do Algarve, que em 1249 ainda administrava este território.

Só por esse problema se explica que o Rei de Portugal, D. Afonso III, tenha deixado passar cerca de 17 anos até outorgar às principais povoações algarvias as suas primeiras cartas de foral, em 1266.

Com o objetivo de assegurar a defesa de um território de fronteira, bem como o seu povoamento por gentes cristãs do norte de Portugal, os nossos primeiros reis, à medida que a reconquista ia avançando na região sul, foram outorgando cartas de foral às localidades com uma dimensão significativa, e já preponderantes sob o domínio islâmico, das regiões do Alentejo e Algarve, criando assim os concelhos. Estes foram complementadas com significativas concessões de territórios às ordens militares que também se tinham destacado na ação da reconquista, como é o caso da Ordem de Santiago em Tavira e Cacela, e da Ordem de Avis em Albufeira. Estratégia bastante diferente da utilizada nos primeiros tempos, na região a norte do Mondego, onde o povoamento se fizera maioritariamente com a criação de senhorios (territórios entregues a membros da Nobreza ou da Igreja – instituições seculares ou ordens religiosas de cariz monástico).  É provável que a Coroa tenha entendido que o modelo do Sul era mais favorável à manutenção do seu controle sobre o território e sua população, ao contrário do Norte, onde o poder senhorial tornava mais longínquo o poder real.                                                                                                                                    Assim, como dizia atrás, os forais eram instrumentos fundacionais para a criação de concelhos e foram o suporte primordial da administração do território no centro e sul do País, embora sempre houvesse alguns largos senhorios neste espaço. Através deles a Coroa apresentava as suas condições de povoamento e administração, traçava as linhas gerais da administração local da justiça, identificava os tributos a pagar em cada transação, e os direitos que reservava para si, etc. Sempre numa perspetiva de mais apetecível liberdade, em relação à que o povo tinha nas regiões do norte de Portugal, nomeadamente na região de Entre Douro e Minho, zona dos senhorios por excelência, e de onde se pretendia atrair gentes para o Sul.

Em simultâneo com a entrega da carta de foral (que até aos finais do séc. XIII se designava carta de foro, só depois aparecendo mencionada a palavra foral), a povoação que a recebia adquiria a categoria de vila e instituía-se o concelho (formado pela vila e o seu território dependente – o termo), a não ser nas localidades que já tinham sido sedes de grandes unidades administrativas na época romana ou muçulmana, que assim já eram consideradas cidades (Lisboa, Évora, Beja, Silves, por exemplo). Não era definido territorialmente o termo respetivo, mas manter-se-ia, em princípio, a área de influência da época muçulmana.

As cartas de foral, ou simplesmente forais, podiam ter diversos modelos, que os reis utilizavam conforme as características geográficas, económicas, demográficas ou militares de cada localidade, naturalmente com as necessárias adaptações ou exceções. Assim, em Portugal aplicaram-se essencialmente os modelos de foral de Coimbra (de 1111); Coimbra, Santarém e Lisboa (de 1179); Salamanca (em Portugal, Valença e Guarda); e Ávila (em Portugal, Évora, de 1166).

O documento era geralmente constituído pelas seguintes partes:

– Invocação – uma referência religiosa (“Em nome de Deus” / Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo);

– Apresentação – parte em que o outorgante se apresenta ou intitula (F. rei de Portugal, com minha esposa…);

– Parte descritiva – o corpo principal do documento, em que se apresentam as regalias concedidas, taxas a cobrar e penas a aplicar);

– Róbora ou confirmação – finalização com a afirmação de que esta carta é válida, dada pelo seu criador, sua data, e assinada e autenticada com selo real);

– Subscritores, confirmantes e testemunhas – Nomes /cargos / assinaturas dos que estavam presentes e confirmaram o documento.

No caso dos forais do Algarve, D. Afonso III seguiu o modelo de Lisboa, outorgado por D. Afonso Henriques em Coimbra, em maio de 1179, exarado num texto em Latim, que na tradução portuguesa ocupa cerca de 5 páginas A4, em letra de imprensa.

O conteúdo do foral de Lisboa foi atribuído a Silves, como principal do Algarve, outorgado em agosto de 1266, em Lisboa, e na presença das principais figuras da corte daquele rei. No entanto, os dois não são uma cópia exata um do outro: há pequenas alterações na ordem dos itens descritos, sendo os valores e penas indicados iguais. Logo no preâmbulo, depois de apresentar as figuras da família real presentes, fica dito que “faço carta de foro a vós povoadores de Silves, a saber, dou e outorgo a vós povoadores de Silves presentes e vindouros foro, usos e costumes da cidade de Lisboa”. No mesmo texto, logo a seguir, ficavam as exceções, nomeadamente a jugada de pão (imposto que o rei cobrava sobre cada parelha de bois a lavrar), para sempre desobrigada, e todos os itens que o rei reservava para si e seus sucessores, entre os quais os fornos de pão, as salinas, o monopólio da venda do sal, o relego de vinho (direito de vender o seu vinho primeiro), os moinhos de Odelouca e azenhas, os reguengos de Lagoa e Arrochela, os figueirais trabalhados pelos mouros, os açougues e banhos da cidade e termo, a pesca da baleia e o padroado de todas as igrejas, construídas e a construir. Depois disso passa a discriminar os impostos a pagar à Coroa por cada transação, as coimas por cada crime cometido, e os direitos e deveres dos magistrados do concelho.

O documento foi escrito num texto manuscrito em Latim, que traduzido para Português ocupa uma extensão semelhante ao de Lisboa.

Depois do foral de Silves, na mesma data e local (agosto de 1266 – Lisboa), foram exarados os forais de Faro, Loulé e Tavira, cada um deles com uma menor extensão, porquanto remete o corpo central do documento para “o foro, uso e costumes da cidade de Lisboa”, e confirma com “dou-vos como foro também as outras coisas que acima foram expressas na sobredita carta registada do foro de Silves”. Esta situação, que hoje caracterizaríamos como sendo em pacote, com todos os forais de uma região emitidos em conjunto, com notória economia de espaço (e de esforço do escrivão) não é muito comum na outorga dos forais. Geralmente o outorgante explicita a totalidade dos itens transcritos do documento que lhe serve de paradigma, com as exceções ou os valores adaptados ao novo concelho1. Na prática, portanto, cada foral destas três últimas povoações, para além da invocação e apresentação idênticas ao de Silves, citando o outorgante e toda a família real, apresenta a parte descritiva composta pela discriminação das exceções e as reservas que faz sobre os bens de cada uma em específico, praticamente idênticos entre todas, conforme foi descrito para Silves, revelando uma realidade económica muito semelhante entre elas, identificando, no entanto, alguns topónimos e nomes de anteriores possuidores. Como exemplo, são citados o reguengo de Quarteira (Loulé); as figueiras de Marim (Faro); os celeiros de Alfeição e os moinhos da Asseca (Tavira). Em relação a nomes, identificam-se os antigos governantes sarracenos (Aben Fabilla – Tavira) e aqueles que transitoriamente foram possuidores de alguns bens imóveis entre a conquista e a outorga dos forais: Domingos Ruiz2 (ou Rodrigues), com moinhos em Tavira (que depois foram dados a D. João de Aboim3), casas, adega, lagar e figueiral em Loulé, e vinhas em Faro; D. Martim Gil4, com uma horta em Loulé; e o deão de Braga5 com uma adega em Loulé. Fica também a mesma exceção da jugada de pão, em relação a Lisboa, em isenção perpétua, posto o que passa a identificar igualmente aquilo que reserva para si em cada um dos concelhos, que geralmente se baseia nos mesmos itens de Silves, concretizando algumas localidades específicas de cada um deles, quer no espaço urbano (tendas, açougues, fangas, banhos, fornos de pão), quer no espaço rural (vinho, hortas, moinhos, azenhas e pisões) ou da zona litoral (salinas, monopólio da venda do sal, pesca da baleia).

Para avaliarmos a proporção em relação ao foral de Silves, cada um destes ocupa cerca de 2/3 de uma página em letra de imprensa, em Português, sendo que tal como aquele, foi originalmente manuscrito em Latim. Não se conhecem os documentos originais destes forais, mas sim uma transcrição também manuscrita em Latim dos séculos seguintes (XIV ou XV), arquivada na Torre do Tombo, nos documentos de D. Afono III, que Alexandre Herculano estudou e publicou na obra citada.

A leitura desta transcrição em latim, naturalmente não é para todos, porquanto, para além da língua latina, apresenta algumas abreviaturas e é escrita à mão, o que, em conjunto, requer alguns conhecimentos e prática de paleografia.

Dada a importância dos mouros que ficaram a viver sob o domínio cristão no Algarve, o Rei D. Afonso III ainda se preocupou com a criação de condições e garantias para a sua sobrevivência, porque a sua força de trabalho era imprescindível para a economia local. Assim, em Lisboa, em 12 de junho de 1269, o rei outorgou a estes um foral específico, que ficou conhecido como Foral dos Mouros Forros (livres) de Silves, Tavira, Loulé e Santa Maria de Faro, dirigindo-se a eles como os meus mouros forros também segundo o modelo aplicado aos mouros forros de Lisboa. Em contrapartida, tinham que pagar anualmente cinco morabitinos ao rei, bem como a alfitra e o azaqui6 e ainda a dízima do trabalho. Continuaram a existir nos séculos seguintes nas principais povoações algarvias, tal como noutras povoações do Sul, embora naturalmente, segundo os padrões da época, vivendo em bairros periféricos – as mourarias, à semelhança dos judeus que viviam em bairros equivalentes – as judiarias. Como não poderiam ter bens imóveis, os mouros que ficaram desenvolviam trabalhos braçais (ofícios), e trabalhavam nas terras e instalações (lagares) que o rei reservara para si nos concelhos.

O mesmo rei D. Afonso III ainda veio a outorgar a quinta carta de foral a uma povoação algarvia – Castro Marim em 1277.

Por esta explanação se pode concluir da importância relativa das povoações medievais do Algarve, cuja influência transitou do domínio muçulmano para o cristão, embora seja de presumir que, em termos económicos, demográficos e sociais, tenha havido alguma quebra nos índices de desenvolvimento das suas populações durante a fase de transição e nas décadas seguintes. Até aí estavam apoiadas numa dinâmica de relacionamento comercial com o Norte de África e o Mediterrâneo e, de repente, há um corte dessa relação, sem a sua substituição integral com outra área económica, porque a norte, o Algarve tinha uma região montanhosa (a serra) e um Alentejo na época muito fechados e de difícil atravessamento, e pouco mobilizadores de novas relações comerciais.

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Notas:

1 Curiosamente ainda hoje é uma maneira de ver o Algarve, a partir de Lisboa, quando se engloba toda a região como se fosse uma simples povoação, esquecendo que há distâncias consideráveis entre as localidades algarvias;

2 Domingos Ruiz – Cavaleiro do tempo de D. Afonso III, possuidor de vários bens imóveis no Algarve, que terá recebido deste rei e já herdador de outros em Tavira, presumivelmente recebidos por seu pai depois da conquista daquela vila em 1239. Há referências a ele como alvazil (juiz geral) em Loulé;

3 D. Martim Gil – Mordomo-mor da corte de D. Afonso III;

4 D. João Peres de AboimRico-homem minhoto que acompanhou sempre D. Afonso III, desde França, e que veio a desempenhar vários cargos na corte deste rei. Pai de Pedro Anes de Portel;

5 Deão = O principal dos cónegos do cabido de uma sé catedral. Em relação a este deão de Braga há dúvidas sobre se seria o Mestre Martinho, futuro D. Martinho Geraldes, arcebispo de Braga, ou já o seu sucessor Fernando Anes Portocarrero, falecido em 1262;

6 Alfitra e azaqui – Tributos específicos pagos pelos mouros aos seus governantes, em géneros, e que continuaram a ser pagos aos reis cristãos pelos mouros forros tolerados nos concelhos.                                                                                                               

Bibliografia:

CAETANO, Marcelo – “A administração da cidade de Lisboa durante a I Dinastia” – Lisboa 1951 – Apêndice 1; (Foral de Lisboa);

HERCULANO, Alexandre“Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines” – Vol. I – Lisboa, 1856 – pág. 706-708 – transcrito de: ANTT – Doações de D. Afonso III – Livro I – fl. 82v-83v (Foral de Silves, Faro, Loulé e Tavira);

HERCULANO, Alexandre“Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines” – Vol I – Lisboa, 1856, pág. 715-716 – transcrito de: ANTT – Doações de D. Afonso III – Livro I – fl. 97v (Foral dos Mouros Forros).

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2. A Reconquista do Algarve

A reconquista cristã no território do Algarve foi o culminar de um longo processo de recuperação dos territórios ocupados pelos Mouros desde o século VIII, e que se fez ainda em diversas fases:

– Em 1189, numa efémera conquista de Alvor e Silves pelas forças militares de D. Sancho I, em conjunto com a armada da Terceira Cruzada que, vinda do Norte da Europa (Flandres), demandava a Palestina. Pela primeira vez o rei de Portugal passava a ostentar também o título de Rei de Silves e do Algarve. Passados dois anos, em 1191, no âmbito da invasão almóada, o miramolim de Marrocos reconquistou a cidade para os Muçulmanos e o rei deixa de usar os títulos;

– Entre 1226 e 1239 (ou 1242, como outros defendem) D. Sancho II e as Ordens Militares já estabelecidas em Portugal (especialmente a de Santiago da Espada, e a dos Hospitalários) integraram no território português a maior parte das povoações do Alentejo e da bacia do baixo Guadiana, em ambas as margens, incluindo algumas que hoje são espanholas. Em 1238/39 terá sido conquistada Alcoutim e Castro Marim, e em 1239 (ou 1242, como defendem alguns autores) foram tomados os castelos de Cacela e Tavira, numa estratégia de formação de uma cunha territorial, pelo que na conquista final já o território ocidental se encontrava em descontinuidade em relação ao restante território muçulmano dominado pelo rei de Niebla, e emir do Algarve, Ibne al- Mahfot (ou Aben Mafon).

Em meados da década de 1240, no âmbito da contenda interna entre o rei D. Sancho II e seu irmão (futuro D. Afonso III), aquele procurou o apoio do monarca castelhano que, estando ocupado em Jaén lhe enviou o seu filho Afonso (futuro rei Afonso X), ao qual, em troca da ajuda, D. Sancho fez entrega das terras conquistadas para leste do Guadiana.

– Entre 1249 e 1250, terminou o processo com a tomada das povoações fortificadas da parte central e ocidental da região, na fase inicial do reinado de D. Afonso III, já depois da morte de seu irmão, o anterior rei D. Sancho II, que faleceu em 1248.

No ano de 1249 as tropas comandadas pelo rei D. Afonso III, vindas do Alentejo, por Almodôvar e pela serra algarvia, encontraram-se com as hostes do mestre de Santiago (da Espada), D. Paio Peres Correia, na zona de Salir, e tomaram sem grandes dificuldades as fortificações de Faro (março), Loulé, Salir, Paderne, Silves e Aljezur, concluindo assim a progressão rumo ao sul muçulmano do processo de reconquista cristã. 

Mas, se a conquista foi em termos militares relativamente pouco exigente, uma manobra política daquele dirigente muçulmano, iria baralhar as contas entre os reis cristãos peninsulares que estavam na mesma missão de reconquista.  O rei mouro, vencido militarmente pelas hostes portuguesas no Algarve, foi render-se politicamente ao infante D. Afonso (futuro Afonso X) filho e herdeiro do rei de Castela e Leão, D. Fernando III, o Santo, e em seu nome, que no ano anterior (1248) tinha tomado Sevilha, colocando-se na posição de seu vassalo. Assim, o território do Algarve passava a ser dominado de facto por Portugal e de iure por Castela.

Este facto deu origem a um sério conflito político diplomático, e até militar, entre os dois reinos cristãos, e retardou o povoamento e administração portuguesa sobre o Algarve durante alguns anos. Em 1252 Afonso X de Castela, toma o poder e declara guerra a Portugal para fazer valer os seus direitos sobre o Algarve e sobre Aroche e Aracena (castelos que tinham sido tomados, entretanto, pelo Rei de Portugal). Esta disputa teve uma primeira pausa no ano seguinte, com a paz entre as duas partes, ficando estipulado que D. Afonso III casaria com D. Beatriz, filha natural do rei de Castela e este ficaria com o usufruto do território, até que houvesse um filho varão desse matrimónio e atingisse a idade de 7 anos. Mas a questão não era tão simples, por dois motivos: a. O rei de Portugal ainda era casado com D. Matilde, condessa de Bolonha (daí o seu cognome de ‘Bolonhês’; e b. Porque D. Beatriz ainda era nessa altura uma criança (nascera em 1242 ou 44).

Entretanto, e pelo primeiro aspeto citado (o casamento realizou-se em Chaves, em maio de 1253), o rei de Portugal ainda viria a ser excomungado pelo Papa, por bigamia, e o conflito ainda viria a reacender-se algumas vezes. Nomeadamente quando, em 1253, o rei de Castela e Leão nomeou o primeiro bispo para Silves, o frade dominicano D. Roberto, com doação perpétua de algumas propriedades em várias localidades do Algarve (Silves, Faro, Albufeira e Tavira) e a aldeia de Lagos, com seus dízimos1, que o rei de Portugal já tinha em seu poder, sem prévio consentimento do monarca português. Conhecemos a carta de protesto do Rei de Portugal, de 22 de janeiro de 1254, em que, já em conjunto com a princesa D. Beatriz, que assina como rainha, se faz notar que só a ele competia nomear prelado “cum ipse Rex Portugalliae verus dominus, et verus patronus civitatis, et diocaesis, eundem deberet praesentare et donare ad ecclesiam Silvensem” e o rei de Castela era só usufrutuário “rex Castella tanquam usufructuarius et non dominus, eas sibi non posset dare”.

A morte da Condessa de Bolonha, em 1258, resolveu o problema da bigamia e o casamento apaziguador com a filha do rei de Castela serenou os ânimos. Daqui nasceria o infante D. Dinis, como primeiro filho varão, em 1261, depois de D. Branca, em 1259, o que veio a facilitar a resolução do conflito do domínio sobre o Algarve. Foi com a bula “In Nostra Proposuistis”, de 4 de julho de 1263, que o papa Urbano IV levantou no interdito que pesava sobre o Reino e tornava tudo legal.

Entretanto, em fevereiro de 1262, Afonso X conquistou a Ibn Mahfut o reino de Niebla.

Em 1263, o rei de Castela nomeia seus procuradores D. Paio Peres Correia, D. Martinho Nunes (Mestre da Ordem dos Templários), D. Fernando Eanes Portocarrero (Deão de Braga) e o Adiantado de Múrcia, D. Alfonso Nuñez, para a negociação do problema, e chega-se a uma solução de compromisso sobre os direitos e limites do território e a anuência do rei de Castela a que D. Afonso III passasse cartas de foral às povoações algarvias.

Em 20 de setembro de 1264, num documento lavrado em Sevilha, Afonso X cede todos os direitos que tinha sobre o Algarve, com exceção do serviço de 50 lanças (entenda-se homens armados com lanças) enquanto vivesse, em momentos de perigo, exterior ou interior. Ficavam como garantia dois castelos do Algarve nas mãos de D. João de Aboim e seu filho, Pedro Anes de Portel, os quais, em caso de incumprimento desse auxílio pelo rei de Portugal, deveriam cobrar e entregar ao Rei de Castela todos os rendimentos que ele tinha antes desta outorga.

Segundo a tradição, em 1266, o infante D. Dinis, com apenas 5 anos de idade, e enviado pelo pai, apresentou-se na Corte castelhana à frente de uma embaixada a solicitar a entrega das terras do Algarve que tinham ficado em posse do rei de Castela e Leão. Consta que o avô ficou muito sensibilizado com a graciosidade do neto e cedeu os direitos (as 50 lanças e os 2 castelos) antes da data aprazada.

Logo nesse ano de 1266, o rei D. Afonso III pôde dedicar-se à outorga dos primeiros quatro forais das principais povoações do Algarve (como veremos num próximo artigo).

Rapidamente ficam definidas as linhas gerais do que viria a ser no ano seguinte (16 de fevereiro de 1267) o Tratado de Badajoz (já redigido em Castelhano e não em Latim), que numa primeira vez, regularizou os limites entre os dois reinos cristãos peninsulares, entre o Algarve e a Andaluzia, separados pelo rio Guadiana. Na zona do Alentejo ainda permaneciam algumas disputas, tais como os territórios de Serpa, Moura, Noudar e Mourão, como Olivença, Campo Maior e Ouguela e ainda Aroche e Aracena, que só ficariam definidos só em 1297, no Tratado de Alcanizes, entre D. Dinis e D. Fernando IV, com as duas últimas a ficar para Castela e os restantes para Portugal. Na verdade, ainda houve disputas pela soberania de Barrancos, aldeia entre Moura, Ensinasola e Aroche, que só se resolveu por sentença judicial de 1544.

Depois de Badajoz o Rei de Castela e Leão deixava de intitular-se Rei do Algarve e, em sentido contrário, o Rei de Portugal passava a acrescentar esse título. No entanto, e incompreensivelmente, no plano religioso, ficava acordado que o bispado de Silves, continuaria a ficar como sufragâneo da arquidiocese de Sevilha por mais de um século, até que, em 1394, viria a integrar-se definitivamente numa província eclesiástica portuguesa – a de Lisboa, na altura recentemente criada. 

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1 Sobre a doação da aldeia de Lagos e os dízimos que o rei aí cobrava, veja-se a cópia de carta de doação existente no ANTT (pesquisa online – PT/TT/CHR/B/001/0003_m0020 e 21).

Bibliografia:

Desconhecido“Crónica da Conquista do Algarve” – 1357 ? – republicada por José Pedro Machado  – Anais do Município de Faro – 1978;

HERCULANO, Alexandre – “História de Portugal” – Livro VI – 1248/79, versão digital Biblioteca Nacional em https://purl.pt/325/4/hg-27286-p/hg-27286-p_item4/hg-27286-p_PDF/hg-27286-p_PDF_24-C-R0150/hg-27286-p_0000_capa-g_t24-C-R0150.pdf

MATOSO, José (Coordenação de) – História de Portugal – Vol. II – Ed. Círculo de Leitores – 1993 – pág. 133-139

RIBEIRO, Ângelo – in “História de Portugal” Coordenação de Damião Peres – Vol. II – Barcelos – 1929; pág. 251/273;

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1. A conquista de Silves – 1189

Sobre a conquista de Silves em 1189, pelo rei D. Sancho I, conhecemos os factos com algum pormenor a partir duma narração escrita em Latim por um cruzado que nela participou diretamente, porque aquele rei teve nessa tarefa a prestimosa ajuda de uma esquadra que vinha do Norte da Europa (Rio Escalda / Antuérpia – atual Bélgica), com flamengos e teutões, e se dirigia para a Terra Santa, naquela que ficou conhecida como a Terceira Cruzada (1189-1192).

Imagem retirada de “A História de Silves em BD”, de José Garcês,
editado pela Câmara Municipal de Silves – dez. 2016.

Fazemos aqui uma síntese dessa descrição:

Depois de partirem da Flandres, em maio de 1189, vieram os cruzados a passar por vários portos ingleses, franceses, asturianos e galegos, e fizeram uma peregrinação a Santiago de Compostela, depois da qual, a 1 de julho, iniciaram o percurso para Lisboa, que havia sido tomada 42 anos antes, também com a ajuda de outros cruzados, no tempo de D. Afonso Henriques (1147). Aqui encontraram outras naus, e deram conta de que, quatro semanas antes, outras naus de cruzados dali tinham sido para, de passagem, conquistar Alvor.

Em Lisboa o rei de Portugal, D. Sancho I, convidou-os a participar na conquista de Silves, que estava a preparar. Depois de onze dias passados em Lisboa, vieram para sul, durante três dias e duas noites, devagar, até que avistaram as ruínas do castelo de Alvor. Seguiram pelo rio Arade acima até Silves, de que viram as terras limítrofes bem trabalhadas, mas sem gente, por terem todos fugido para a cidade. Logo que aportaram, alguns por conta própria fizeram alguns danos em casas e bens que encontraram. Entraram em contacto com a vanguarda das tropas portuguesas que tinham vindo por terra e estavam acampados a 4 milhas de distância. O capitão português estava cético quanto à possibilidade de conquistar a cidade que via muito forte, mas os cruzados estavam determinados a fazê-lo e avançaram, com a cobertura dos portugueses.

É feita uma descrição geográfica de Silves, com muitas casas e mansões ameníssimas; é rodeada de muros e fossos, sem casas do lado de fora. Tinha quatro ordens de fortificações: a primeira, na zona do vale, chamado Rovale, onde havia uma torre albarrã; a maior estava no monte e chamavam-lhe Almedina (a cidade); outra fortificação, na encosta até ao vale, para proteger o canal das águas; o rio Arade ou Drade, com o seu afluente Odelouca; sobre o canal de abastecimento de água há quatro torres, na chamada Couraça; As entradas pelas portas eram muito angulosas e tortuosas, tanto que seria mais fácil subir os muros, do que passar por elas.

Logo no primeiro dia, os Mouros fizeram sair um grupo de dez cavaleiros da cidade a desafiar os cruzados, ao que estes responderam, e prepararam o assalto para o dia seguinte, com escadas. Após as primeiras escaramuças, os Mouros, subitamente, refugiaram-se na cidadela, tendo os cruzados ocupado a cidade inferior, onde passaram a noite em sossego, eles e os portugueses em campos diversos. Na madrugada seguinte (dia de Santa Maria Madalena – 22 de julho), depois da missa, atacaram a cidadela, mas a tarefa não foi fácil porque as casas não ardiam e os Mouros ofereceram brava resistência.

Oito dias depois, a 29 de julho, chegou o rei de Portugal, e o seu exército foi engrossando nos dias seguintes. No cerco construíram uma máquina, a que chamavam ouriço, e com ela intentaram romper as muralhas, mas os Mouros respondiam com estopa, azeite e fogo e queimaram parte da máquina. Mas, no dia seguinte, conseguiram repará-la e com ela derrocar uma parte do muro, coordenando com outras duas que o exército português também tinha. Ao outro dia fugiu um mouro da cidade e trouxe ao rei dois pendões da mesma, indicando que mal tomassem a couraça, logo tomariam a cidade.

Na véspera de S. Lourenço (9 de agosto), um galego chegou-se ao muro em parte derrubado e conseguiu tirar uma pedra angular. Isso estimulou os sitiantes, que continuaram também com minas (túneis) por baixo dos muros. Nessas minas fizeram uma grande fogueira, o que fez claudicar uma torre e parte do muro, posto o que puderam por escadas e subir para a cidadela. Os mouros acabaram por recuar e foram para a almedina, onde pensavam ter uma passagem segura. No dia seguinte os sitiantes continuaram a avançar com os túneis, embora com contrariados pelos Mouros, até que os Flamengos minaram o muro da cidadela.

Na véspera de Nª Sª de Assunção (14 de agosto), os Mouros formaram um esquadrão, mas um deles fugiu para os cristãos e tendo sido muito bem recebido, e comido e bebido à saciedade, queixou-se que na cidade não havia água.

A 18 de agosto os cristãos arremeteram em força contra a cidade, mas foram recebidos com tanta violência que tiveram que voltar para trás, com muitos feridos. Começou-se a achar que a tarefa era impossível de se realizar. Apesar disso, com as quatro máquinas e os túneis escavados continuaram o trabalho de assalto, fizeram outra tentativa a 22 de agosto, de madrugada, mas sem efeito prático.

A 24 de agosto os que iam numa mina encontraram-se com os Mouros que vinham em sentido contrário e houve grande luta.

Finalmente a 1 de setembro, os Mouros começaram a gritar dos muros que queriam entregar a cidade, mortos de sede. Assim trataram de negociar com o rei a entrega da cidade e o castelo com tudo o que lhes pertencesse. Os cruzados, porém, não estavam de acordo. Convieram apenas em que saíssem com o que tivessem vestido, ficando o rei com a cidade e eles com os despojos.

Assim, no dia 3 saiu da cidade o alcaide, a cavalo, com os restantes a pé, sendo que os cruzados os atacaram e saquearam, o que o rei achou muito mal e provocou desavenças entre eles. Só no dia seguinte se viu as condições em que estavam na cidade, mal alimentados, sem forças, com muitos mortos e moribundos pelas ruas. Declararam que só era dada a cada um a quantidade de água que cabia numa casca de um ovo. Mantinham-se de figos porque não tinham água para fazer pão. Também os cristãos cativos estavam muito mal. Contaram-se 15.800 pessoas na cidade. Considerava-se que Silves era muito mais forte do que Lisboa e com edifícios de mais valor, e em toda a Hispânia não havia terra mais forte, nem que fizesse mais dano aos cristãos. Os cruzados eram 3500 e as tropas do rei muitos mais, com forças das Ordens Militares do Templo, de Avis e do Hospital.

Os cruzados numa primeira fase tomaram posse dos bens da cidade e não queriam dar parte ao rei e aos portugueses, o que levou o rei a considerar que mais valia não se ter tomado a cidade.  Mas acabou por tomar esses bens e depois, na opinião dos cruzados, não os repartiu devidamente com eles, o que os levou a partir de Silves desgostosos com o rei, a 7 de setembro, em direção ao mar. Mas antes de sair a barra ainda se demoraram uns dias a fazer as necessárias reparações nos barcos, e só saíram definitivamente para o mar a 21 de setembro.

Bibliografia:

– LOPES, João Baptista da Silva“Relação da derrota naval, façanhas e sucessos dos cruzados que partirão do Escalda para a Terra Santa no anno de 1189” – Lisboa, 1844;

MATOS, Manuel Cadafaz de“A cidade de Silves num itinerário naval do século XII por um cruzado anónimo – Lisboa, 1999 – Pág. 155-280.

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