A soberania total do Rei de Portugal sobre o território do Algarve foi algo difícil de ser conseguida numa contenda com o Rei de Castela e Leão, na sequência da ação militar contra o domínio muçulmano representado pelo rei de Niebla e emir do Algarve, que em 1249 ainda administrava este território.
Só por esse problema se explica que o Rei de Portugal, D. Afonso III, tenha deixado passar cerca de 17 anos até outorgar às principais povoações algarvias as suas primeiras cartas de foral, em 1266.
Com o objetivo de assegurar a defesa de um território de fronteira, bem como o seu povoamento por gentes cristãs do norte de Portugal, os nossos primeiros reis, à medida que a reconquista ia avançando na região sul, foram outorgando cartas de foral às localidades com uma dimensão significativa, e já preponderantes sob o domínio islâmico, das regiões do Alentejo e Algarve, criando assim os concelhos. Estes foram complementadas com significativas concessões de territórios às ordens militares que também se tinham destacado na ação da reconquista, como é o caso da Ordem de Santiago em Tavira e Cacela, e da Ordem de Avis em Albufeira. Estratégia bastante diferente da utilizada nos primeiros tempos, na região a norte do Mondego, onde o povoamento se fizera maioritariamente com a criação de senhorios (territórios entregues a membros da Nobreza ou da Igreja – instituições seculares ou ordens religiosas de cariz monástico). É provável que a Coroa tenha entendido que o modelo do Sul era mais favorável à manutenção do seu controle sobre o território e sua população, ao contrário do Norte, onde o poder senhorial tornava mais longínquo o poder real. Assim, como dizia atrás, os forais eram instrumentos fundacionais para a criação de concelhos e foram o suporte primordial da administração do território no centro e sul do País, embora sempre houvesse alguns largos senhorios neste espaço. Através deles a Coroa apresentava as suas condições de povoamento e administração, traçava as linhas gerais da administração local da justiça, identificava os tributos a pagar em cada transação, e os direitos que reservava para si, etc. Sempre numa perspetiva de mais apetecível liberdade, em relação à que o povo tinha nas regiões do norte de Portugal, nomeadamente na região de Entre Douro e Minho, zona dos senhorios por excelência, e de onde se pretendia atrair gentes para o Sul.
Em simultâneo com a entrega da carta de foral (que até aos finais do séc. XIII se designava carta de foro, só depois aparecendo mencionada a palavra foral), a povoação que a recebia adquiria a categoria de vila e instituía-se o concelho (formado pela vila e o seu território dependente – o termo), a não ser nas localidades que já tinham sido sedes de grandes unidades administrativas na época romana ou muçulmana, que assim já eram consideradas cidades (Lisboa, Évora, Beja, Silves, por exemplo). Não era definido territorialmente o termo respetivo, mas manter-se-ia, em princípio, a área de influência da época muçulmana.
As cartas de foral, ou simplesmente forais, podiam ter diversos modelos, que os reis utilizavam conforme as características geográficas, económicas, demográficas ou militares de cada localidade, naturalmente com as necessárias adaptações ou exceções. Assim, em Portugal aplicaram-se essencialmente os modelos de foral de Coimbra (de 1111); Coimbra, Santarém e Lisboa (de 1179); Salamanca (em Portugal, Valença e Guarda); e Ávila (em Portugal, Évora, de 1166).
O documento era geralmente constituído pelas seguintes partes:
– Invocação – uma referência religiosa (“Em nome de Deus” / Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo);
– Apresentação – parte em que o outorgante se apresenta ou intitula (F. rei de Portugal, com minha esposa…);
– Parte descritiva – o corpo principal do documento, em que se apresentam as regalias concedidas, taxas a cobrar e penas a aplicar);
– Róbora ou confirmação – finalização com a afirmação de que esta carta é válida, dada pelo seu criador, sua data, e assinada e autenticada com selo real);
– Subscritores, confirmantes e testemunhas – Nomes /cargos / assinaturas dos que estavam presentes e confirmaram o documento.
No caso dos forais do Algarve, D. Afonso III seguiu o modelo de Lisboa, outorgado por D. Afonso Henriques em Coimbra, em maio de 1179, exarado num texto em Latim, que na tradução portuguesa ocupa cerca de 5 páginas A4, em letra de imprensa.
O conteúdo do foral de Lisboa foi atribuído a Silves, como principal do Algarve, outorgado em agosto de 1266, em Lisboa, e na presença das principais figuras da corte daquele rei. No entanto, os dois não são uma cópia exata um do outro: há pequenas alterações na ordem dos itens descritos, sendo os valores e penas indicados iguais. Logo no preâmbulo, depois de apresentar as figuras da família real presentes, fica dito que “faço carta de foro a vós povoadores de Silves, a saber, dou e outorgo a vós povoadores de Silves presentes e vindouros foro, usos e costumes da cidade de Lisboa”. No mesmo texto, logo a seguir, ficavam as exceções, nomeadamente a jugada de pão (imposto que o rei cobrava sobre cada parelha de bois a lavrar), para sempre desobrigada, e todos os itens que o rei reservava para si e seus sucessores, entre os quais os fornos de pão, as salinas, o monopólio da venda do sal, o relego de vinho (direito de vender o seu vinho primeiro), os moinhos de Odelouca e azenhas, os reguengos de Lagoa e Arrochela, os figueirais trabalhados pelos mouros, os açougues e banhos da cidade e termo, a pesca da baleia e o padroado de todas as igrejas, construídas e a construir. Depois disso passa a discriminar os impostos a pagar à Coroa por cada transação, as coimas por cada crime cometido, e os direitos e deveres dos magistrados do concelho.
O documento foi escrito num texto manuscrito em Latim, que traduzido para Português ocupa uma extensão semelhante ao de Lisboa.
Depois do foral de Silves, na mesma data e local (agosto de 1266 – Lisboa), foram exarados os forais de Faro, Loulé e Tavira, cada um deles com uma menor extensão, porquanto remete o corpo central do documento para “o foro, uso e costumes da cidade de Lisboa”, e confirma com “dou-vos como foro também as outras coisas que acima foram expressas na sobredita carta registada do foro de Silves”. Esta situação, que hoje caracterizaríamos como sendo em pacote, com todos os forais de uma região emitidos em conjunto, com notória economia de espaço (e de esforço do escrivão) não é muito comum na outorga dos forais. Geralmente o outorgante explicita a totalidade dos itens transcritos do documento que lhe serve de paradigma, com as exceções ou os valores adaptados ao novo concelho1. Na prática, portanto, cada foral destas três últimas povoações, para além da invocação e apresentação idênticas ao de Silves, citando o outorgante e toda a família real, apresenta a parte descritiva composta pela discriminação das exceções e as reservas que faz sobre os bens de cada uma em específico, praticamente idênticos entre todas, conforme foi descrito para Silves, revelando uma realidade económica muito semelhante entre elas, identificando, no entanto, alguns topónimos e nomes de anteriores possuidores. Como exemplo, são citados o reguengo de Quarteira (Loulé); as figueiras de Marim (Faro); os celeiros de Alfeição e os moinhos da Asseca (Tavira). Em relação a nomes, identificam-se os antigos governantes sarracenos (Aben Fabilla – Tavira) e aqueles que transitoriamente foram possuidores de alguns bens imóveis entre a conquista e a outorga dos forais: Domingos Ruiz2 (ou Rodrigues), com moinhos em Tavira (que depois foram dados a D. João de Aboim3), casas, adega, lagar e figueiral em Loulé, e vinhas em Faro; D. Martim Gil4, com uma horta em Loulé; e o deão de Braga5 com uma adega em Loulé. Fica também a mesma exceção da jugada de pão, em relação a Lisboa, em isenção perpétua, posto o que passa a identificar igualmente aquilo que reserva para si em cada um dos concelhos, que geralmente se baseia nos mesmos itens de Silves, concretizando algumas localidades específicas de cada um deles, quer no espaço urbano (tendas, açougues, fangas, banhos, fornos de pão), quer no espaço rural (vinho, hortas, moinhos, azenhas e pisões) ou da zona litoral (salinas, monopólio da venda do sal, pesca da baleia).
Para avaliarmos a proporção em relação ao foral de Silves, cada um destes ocupa cerca de 2/3 de uma página em letra de imprensa, em Português, sendo que tal como aquele, foi originalmente manuscrito em Latim. Não se conhecem os documentos originais destes forais, mas sim uma transcrição também manuscrita em Latim dos séculos seguintes (XIV ou XV), arquivada na Torre do Tombo, nos documentos de D. Afono III, que Alexandre Herculano estudou e publicou na obra citada.
A leitura desta transcrição em latim, naturalmente não é para todos, porquanto, para além da língua latina, apresenta algumas abreviaturas e é escrita à mão, o que, em conjunto, requer alguns conhecimentos e prática de paleografia.
Dada a importância dos mouros que ficaram a viver sob o domínio cristão no Algarve, o Rei D. Afonso III ainda se preocupou com a criação de condições e garantias para a sua sobrevivência, porque a sua força de trabalho era imprescindível para a economia local. Assim, em Lisboa, em 12 de junho de 1269, o rei outorgou a estes um foral específico, que ficou conhecido como Foral dos Mouros Forros (livres) de Silves, Tavira, Loulé e Santa Maria de Faro, dirigindo-se a eles como os meus mouros forros também segundo o modelo aplicado aos mouros forros de Lisboa. Em contrapartida, tinham que pagar anualmente cinco morabitinos ao rei, bem como a alfitra e o azaqui6 e ainda a dízima do trabalho. Continuaram a existir nos séculos seguintes nas principais povoações algarvias, tal como noutras povoações do Sul, embora naturalmente, segundo os padrões da época, vivendo em bairros periféricos – as mourarias, à semelhança dos judeus que viviam em bairros equivalentes – as judiarias. Como não poderiam ter bens imóveis, os mouros que ficaram desenvolviam trabalhos braçais (ofícios), e trabalhavam nas terras e instalações (lagares) que o rei reservara para si nos concelhos.
O mesmo rei D. Afonso III ainda veio a outorgar a quinta carta de foral a uma povoação algarvia – Castro Marim em 1277.
Por esta explanação se pode concluir da importância relativa das povoações medievais do Algarve, cuja influência transitou do domínio muçulmano para o cristão, embora seja de presumir que, em termos económicos, demográficos e sociais, tenha havido alguma quebra nos índices de desenvolvimento das suas populações durante a fase de transição e nas décadas seguintes. Até aí estavam apoiadas numa dinâmica de relacionamento comercial com o Norte de África e o Mediterrâneo e, de repente, há um corte dessa relação, sem a sua substituição integral com outra área económica, porque a norte, o Algarve tinha uma região montanhosa (a serra) e um Alentejo na época muito fechados e de difícil atravessamento, e pouco mobilizadores de novas relações comerciais.
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Notas:
Bibliografia:
– CAETANO, Marcelo – “A administração da cidade de Lisboa durante a I Dinastia” – Lisboa 1951 – Apêndice 1; (Foral de Lisboa);
– HERCULANO, Alexandre – “Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines” – Vol. I – Lisboa, 1856 – pág. 706-708 – transcrito de: ANTT – Doações de D. Afonso III – Livro I – fl. 82v-83v (Foral de Silves, Faro, Loulé e Tavira);
– HERCULANO, Alexandre – “Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines” – Vol I – Lisboa, 1856, pág. 715-716 – transcrito de: ANTT – Doações de D. Afonso III – Livro I – fl. 97v (Foral dos Mouros Forros).