26 – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé (1835-48?)

Introdução

Mudando de temas e principalmente de tempo histórico, nos próximos artigos iremos aqui apresentar, em meia dúzia de parcelas, um pequeno trabalho que resulta da investigação que teve por base uma obra existente no arquivo da Câmara Municipal de Loulé – “Actas da Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé”, ou, mais simplesmente “Actas da Sociedade de Leitura”. Foi realizado em 1978 e era nessa ocasião um trabalho académico para a Licenciatura em História pela Faculdade de Letras de Lisboa.

Como o próprio título indica, trata-se do livro de atas das sessões da Sociedade. É manuscrito, todavia sem grande dificuldade de leitura, embora a letra de alguns secretários seja mais difícil de decifrar do que o normal.

Infelizmente o livro não está complementado com os Estatutos da Sociedade, que de vez em quando são referidos e que existiam na sede da coletividade. Se tal acontecesse, muitas coisas mais se poderiam compreender e explicar-se-iam outras pelas entrelinhas do que foi ficando registado em ata. Aqui cabe referir que as atas não são geralmente muito extensas, nem referem os acontecimentos no seu pormenor, antes se ficando por uma espécie de matéria sumariada. Apesar de tudo, conseguimos realizar o nosso trabalho, com maior ou menor dificuldade, com maior ou menor mérito – isso se verá pela sua leitura.

Supomos ter contribuído para aclarar alguns aspetos (pelo menos bairristas, relacionados com a vida cultural de Loulé nos tempos de antanho, e que nos parecem ser do conhecimento de poucos). Aliás, ficamos com vontade de um dia tarde voltar ao assunto com mais vagar.

Quanto ao aspeto ideológico e político talvez seja também uma achega para o conhecimento do processus evolutivo do Liberalismo nas regiões do interior do país e mais distantes dos grandes centros urbanos.

Parecendo-nos que é importante o seu conhecimento, divulgamos novamente neste blog, depois de, numa versão mais sintética já ter sido publicado nas Atas do I Congresso do Concelho de Loulé – Abril.1999 – pág. 7-15.

 Posta esta breve introdução, iremos então colocar os vários artigos.

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25B – Passagem do Rei D. Sebastião pelo Morgado de Quarteira e Loulé – 1573

Para concluir a abordagem à viagem de D. Sebastião pelo Alentejo e Algarve, em 1573, apresentamos hoje a parte que respeita a Quarteira e Loulé.

Quase três semanas depois de ter estado em Almodôvar, seguindo por Ourique, Messejana, Colos, Odemira, Odeceixe, Aljezur, Lagos, Sagres, Alvor, V. N. Portimão, Monchique, Silves, Alcantarilha e Albufeira, o Rei D. Sebastião chegou ao termo (concelho) de Loulé, passando por Quarteira, antes de entrar na Vila. Em todas estas terras foi calorosamente recebido, principalmente em Lagos, talvez com exceção de Silves, cuja Câmara não terá gostado que D. Sebastião tivesse elevado Monchique (que pertencia ao seu termo) à categoria de vila.

A viagem pelo concelho de Loulé é conhecida do grande público, porquanto a alcaidaria do castelo de Loulé desde há algumas décadas que ostenta uma lápide a assinalar o feito, e a Estalagem da Cegonha – Vilamoura refere também no seu site promocional a passagem do rei pelas instalações do que era então o solar do Morgado de Quarteira.

Este morgado tinha sido criado em 1413, com D. João I, o qual cedeu a herdade que pertencia à Coroa desde o foral de Loulé (1266) a Gonçalo Nunes Barreto, por troca com um senhorio que este tinha em Cernache – Coimbra (então chamado Cernache dos Alhos, não confundir com Cernache do Bonjardim – Sertã).

Na data desta visita era senhor do Morgado de Quarteira Rui Barreto, penso que Rui Nunes Barreto, de seu nome mais completo, e que seria o 7º titular do morgado. Desempenhava também as funções de Alcaide-Mor de Faro. Ali foi a comitiva recebida com um lanche, uma pequena corrida de touros e uma rápida montaria.

Sobre a estadia em Loulé destacam-se a presença da comitiva na alcaidaria do castelo, as danças da receção em sua honra, a beleza das raparigas, a descrição das ruas da vila, e ainda uma visita ao mosteiro/ convento de Santo António (de frades franciscanos da Província da Piedade, o primeiro, mais abaixo do que o atual, que teria sido fundado em meados do séc. XVI por Nuno Rodrigues Barreto e D. Leonor de Milão, pais da camoniana D. Francisca de Aragão, e habitado até 1692, quando os frades passaram para o segundo), para além do facto de não ter havido corrida de touros, porque a comitiva sairia logo no dia seguinte, pela manhã. Curiosa é ainda a frase “veio El-Rei pela Quarteira” que, presumindo que foi bem transcrita do original que se desconhece, seria um dos primeiros registos escritos de fazer anteceder o topónimo pelo artigo definido (“pel’a ou n’a Quarteira”). Tal como na referência ao rei ouvir missa “na Albufeira”.

Transcreve-se assim a passagem pela Quinta de Quarteira e por Loulé, na descrição do cronista João Cascão, publicada por Francisco de Sales Loureiro em “Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve” – Livros Horizonte – 1984 – pág. 111/112, em grafia atualizada e com as minhas notas entre parêntesis retos:

“5ª feira, 29 de janeiro [de 1573], ouviu El-Rei missa na Albufeira; almoçou [pequeno-almoço] e partiu às 9 horas para Loulé, que são três léguas de jornada. Veio El-Rei pela Quarteira, quinta [morgado de Quarteira – atual Vilamoura] de Rui Barreto, apeou-se nas casas da quinta e no pátio correram-lhe umas vaquinhas e um touro.

Esteve-os vendo de uma janela, e mandou deitar o Couto [o cortesão Zuzarte do Couto] no curro; mandou-lhe fechar as portas, por que não tivesse onde se recolher, e de medo esmoreceu. El-Rei mandou-o então tirar do curro. El-Rei comeu algumas coisas doces sobre que bebeu, e um criado de Rui Barreto andou pelos fidalgos, dando marmelada e púcaros de água, e à gente miúda se deu todo o vinho que quiseram beber. Gastar-se-ia nisto hora e meia; chegou o Senhor D. Duarte [o Duque de Guimarães] por vir um pedaço atrás de El-Rei, já no cabo dos touros. Pôs-se El-Rei a cavalo e foi montear uns porcos, que lhe tinham emprazados; fez-se a armada ao redor dum paul, e à batida saíram três porcos e alguns veados. Correu El-Rei e Rui Barreto a um porco; Rui Barreto o errou duas vezes e El-Rei lhe deu duas lançadas grandes de que o matou. E o Duque de Aveiro e o Conde da Vidigueira saíram a outro que mataram, e o terceiro deixaram ir por ser muito pequeno. Acabado o monte [montaria], foi El-Rei ver as éguas da quinta, que dizem que passam de 50. Vistas, pôs-se a caminho de Loulé, meia légua do qual o veio receber o juiz, com perto de 100 de cavalo com sua bandeira, lanças e adargas, e três bandeiras da Ordenança [forças militares territoriais], que fizeram a salva de arcabuzia [de arcabuz – espingarda da época].

Mais perto da vila, receberam-no com uma dança de homens, e outra de mulatas, que dançavam em extremo, e cantavam a seu modo muito arrazoadamente. Acompanhado de tudo acima dito, até à porta do castelo por onde entrou, e nela o receberam os Vereadores. Dizem que o Vereador mais velho estava para lhe dizer algumas coisas a modo de fala, e passou El-Rei tão depressa, que não houve comodidade para conseguir seu desejo. El-Rei recolheu-se nesta ordem para as casas do Alcaide-Mor, que são no castelo.

O Senhor D. Duarte, depois de deixá-lo nelas, foi ver o castelo e a fortaleza da Vila, a qual, entrando El-Rei, fez salva da artilharia. E foi também ver fora da Vila um mosteirinho de Capuchos da advocação de Santo António [seria o primeiro convento de Santo António, um pouco mais abaixo do atual, que viria a ser abandonado em 1692, quando estava muito destruído]. Recolhido o Senhor D. Duarte a sua casa, vieram beijar-lhe as mãos os Vereadores. E as mulatas vieram à noite cantar à porta, e o Senhor D. Duarte lhes fez mercê; e mandou visitar a mulher de Gonçalo Nunes Barreto. Terá esta Vila 700 até 800 vizinhos [casas de família]. É muito bem assombrada, e com muito formosas ruas. A, por onde El-Rei entrou, estava arrazoadamente aparamentada, e com algumas moças muito bonitas pelas janelas, que não haviam inveja às de Vila Nova [de Portimão]. Estava esta Vila muito bem provida de mantimentos e tinham touros para correr a El-Rei, se quisera estar ao segundo dia.

A Alcaidaria-Mor desta Vila é do Senhor D. Duarte e fez mercê dela a Gonçalo Nunes Barreto, [da mesma família de Rui Barreto] que é o Alcaide-Mor.

6ª feira, 30 de janeiro, entre as 6 e as 7, foi El-Rei ver o Mosteirinho de Santo António, e o Senhor D. Duarte com ele, o Duque de Aveiro e os fidalgos. Às 7 horas dadas, partiu para a cidade de Faro, duas léguas de jornada.”

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25A – Passagem do Rei D. Sebastião por Almodôvar – 1573

Conforme indiquei, irei começar pela passagem do Rei D. Sebastião por Almodôvar, em janeiro de 1573.

Como introdução devo referir que D. Sebastião nesta data ainda tinha 18 anos (faria 19 anos alguns dias mais tarde, durante esta viagem, precisamente no dia que chegou a Lagos – 20 de janeiro), vila importante que ele viria a elevar à categoria de cidade e que, em conjunto com os outros lugares henriquinos, viria a ser um lugar muito especial para si, sendo a recíproca também verdadeira, simbolicamente representada na icónica estátua de João Cutileiro.

O Senhor D. Duarte, como é tratado na crónica, era o Infante D. Duarte, 5º Duque de Guimarães e primo do Rei, porque era sobrinho do seu avô D. João III, sendo então o Condestável do Reino, com 32 anos de idade, e de quem João Cascão era cronista pessoal.

Na comitiva, como era normal, vinham diversas figuras gradas da Corte, tais como: o Duque de Aveiro, os Condes da Vidigueira, do Vimioso e de Sortelha; altos funcionários: Alferes-Mor; Almotacé-Mor; Estribeiro-Mor; Reposteiro-Mor; Corregedores da Corte; Secretários de Estado; Vedores; Capelão- Mor; para além de vários cortesãos e moços fidalgos.

Do texto destaco, em sumário, o temporal na viagem entre Castro Verde e Almodôvar; as dificuldades logísticas do alojamento em Almodôvar, em casas mal isoladas para a chuva, depois de um dia de temporal, com a curiosa expressão “mal em campo, pior em vila”; o pormenor da subida especulativa do preço do sabão na oportunidade, resolvido pelo Almotacé-Mor (o magistrado da Corte que tratava dos abastecimentos, preços, taxas e impostos); e a habitual corrida de touros com que a comitiva era geralmente brindada em cada localidade visitada. De resto, não farei mais comentários, porque o texto é bastante percetível.

Passo então a citar a descrição do cronista João Cascão, publicada por Francisco de Sales Loureiro, em “Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve” – Livros Horizonte – 1984 – pág. 87/89, em grafia atualizada, com algumas notas de esclarecimento da minha autoria, entre parêntesis:

(…) “5ª feira, 8 de janeiro [de 1573], depois de El-Rei [D. Sebastião] ouvir missa pela manhã cedo, e almoçar [pequeno–almoço, em Castro Verde], partiu para Almodôvar. São três léguas de jornada, e foi o pior dia de chuva e o pior caminho de lama e atoleiros, que podia ser; não faltou muito grande vento e não faltaram duas muito grandes ribeiras e uma delas de tamanha corrente que parecia querer levar os homens e as bestas. Em cada uma destas fazia El-Rei e o Senhor D. Duarte aos de cavalo que pusessem às ancas os de pé; houve muitas bestas caídas em atoleiros, e outras nas ribeiras. E um moço da guarda-roupa de El-Rei, por nome Manuel da Fonseca, caiu na pior ribeira, sendo El-Rei presente. E correu muito trabalho um grande pedaço que esteve na água, ele e o cavalo sem se poderem erguer, e alguns de cavalo se deitaram à ribeira a lhe acudir e El-Rei o cometeu, também prouve a Deus que saiu, mas mal enxuto.

A guarda-roupa do Senhor D. Duarte passou muito trabalho e foi todo de Manuel de Amaral, e de Luís Veloso, aos quais caíram as azémolas quatro vezes. E eles, metidos na lama até aos joelhos, com elas, carregavam as caixas às costas e estando neste naufrágio passou o Conde do Vimioso e disse, compadecido de os ver em tal tormenta, que tomara ver ao Senhor D. Duarte um par de boas Comendas, que dera a cada um sua, por tamanho trabalho.

Mas, ainda os louvara mais, se adivinhara que o seu fato lhe ficara aquela noite na charneca e se havia de ver como outros sem ele, a que não chegou aquela noite. E os lobos saltaram com as bestas de maneira que, até pela manhã, não puderam seus donos dar com elas nem carregar o fato.

Meia légua antes de chegar El-Rei, com aquela grande tormenta, o vieram receber o Juiz, Vereadores, e alguma mais gente de cavalo, e lhe trouxeram um veado o qual lhe disseram que era muito bravo, e tinha esperado por ele um grande pedaço à chuva.

El-Rei o quis ver correr aos da terra, e por mais recontradas que lhe deram, não se quis bulir.

Veio Sua Alteza se recolhendo ao lugar; à entrada dele a desordenança muito molhada e muito sem sabor; e entrando no lugar depois e fazer oração na igreja, como costumava em todas, foi para as suas casas, às quais o Senhor D. Duarte, e as dos mais, eram tais e tão chuvosas que se pudera por elas dizer ou por eles: mal em campo, pior em Vila.

No aposento do Senhor D. Duarte não tão somente não havia casa em que não chovesse, mas não havia coisa enxuta nelas, e houve votos de se fazer a cama do Senhor D. Duarte numa loja grande das casas, porque além de chover na câmara estava muito danificada, e os que o notaram foi D. Diogo de Lima, e pedro de Andrade, mas o Senhor D. Duarte não consentiu. Neste lugar e em outros, por onde El-Rei passava, se punham muitas pessoas de joelhos e levantavam as mãos como que faziam, oração, e algumas mulheres havia que batiam nos peitos. Também se vendeu neste lugar o sabão em casa de um Cristão-novo, e passando um homem da Corte com um pouco lhe comprara, na mão, pela porta do Almotacé-Mor, ele lhe perguntou o que justara, o homem respondeu que quinze reais, e era para se poder lavar uma camisa. E o Almotacé-Mor fez experiência com pesos a quanto chegava o arrátel daquela maneira, e achou que passava de 9 vinténs e castigou o homem muito bem.

Pus aqui isto para se verem os trabalhos e necessidades que pelo caminho se passam que até lavar uma camisa custa tanto trabalho, também posso por que por almotaçaria se mandava consertar o calçado.

6ª feira, 9 de janeiro [de 1573], esteve El-Rei em Almodôvar e pela manhã ouviu missa, e o Senhor D. Duarte e o Duque [de Aveiro] com ele. Acabando El-Rei de jantar [atualmente seria almoçar] se pôs a cavalo com o Duque e foi ao campo. Lá esteve pouco por ter aqueles dias touros, aos quais andou e o Senhor D. Duarte, e o Duque [de Aveiro] e o Conde do Vimioso.

Houve algumas sortes boas a cavalo, e se não houvera medo lançarem-me por suspeito, dissera quão bem o Senhor D. Duarte andou, e se me deram o juramento dos Santos Evangelhos, dissera que não podia outrem andar melhor, nem mais gentil-homem, e não faltaram muitos que nesta matéria sustentem minha verdadeira opinião, e em todos muito certa. El-Rei acudiu maravilhosamente e com muito fervor a um moço da Estribeira seu, que tomou o touro, e lho tirou das mãos, e ficou disto muito contente, e lançou o cavalo. Depois de gastar El-Rei neste exercício um grande pedaço, se recolheu a sua casa com o Senhor D. Duarte e o Duque de Aveiro e o Conde do Vimioso, e mandou sair novos touros para outros toureiros, os quais são os seguintes:

O Alferes-Mor e D. Rodrigo Lobo em cavalos do Duque de Aveiro e Luís Álvares de Távora, o moço, em um seu. Deram em touros tão mansos que não se ofereceu fazerem alguma sorte, mais do que uma em que o Alferes-Mor perdeu o barrete e El-Rei se desenfadou.

Sábado, 10 de janeiro, ouviu El-Rei missa, muito antemanhã. Antes de romper a alva, partiu da forma costumada e veio jantar [almoçar] a Ourique.”(…)

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25 – Viagem de D. Sebastião ao Alentejo e Algarve – 1573

Os próximos posts serão dedicados a uma célebre viagem que o Rei D. Sebastião fez pelo Alentejo e Algarve em 1573, cinco anos antes da fatídica viagem de Alcácer –Quibir.

O périplo está devidamente relatado numa crónica de João Cascão (cronista régio que acompanhou a viagem) e foi publicada por Francisco de Sales Loureiro com “Uma jornada ao Alentejo e ao Algarve” editada pelos Livros Horizonte – 1984.

A viagem realizou-se entre janeiro e fevereiro de 1573, tendo-se iniciado em Évora e passado por Viana do Alentejo, Cuba, Beja, Entradas, Castro Verde, S. Pedro das Cabeças, Almodôvar, Ourique, Messejana, Colos, Odemira, Odeceixe, Aljezur, Lagos, Sagres, Alvor, Portimão, Monchique, Silves, Albufeira, Quarteira, Loulé, Faro, Tavira, Cacela, Castro Marim, Aiamonte, Alcoutim, Mértola, Serpa, Moura, Mourão, Cheles, Olivença, Elvas, Vila Viçosa, Estremoz e tendo-se concluído novamente em Évora.

O cronista dá-nos um relato com algum pormenor sobre a viagem e estadia do séquito real em cada uma das localidades assinaladas, que será de alguma curiosidade para os seus naturais.

Não vou, evidentemente, aqui transcrever toda a obra, mas tão somente as passagens por Almodôvar, morgado de Quarteira e Loulé.

Por outro lado, irei repetir as publicações que já fiz no FaceBook, pelo que peço aos meus ‘amigos’ que tenham isso em conta.

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24. Breve história de Tavira (até ao séc. XVI)

A época da fundação de Tavira é praticamente impossível de se determinar, como acontece com grande parta das antigas povoações.

Segundo algumas crónicas antigas, teria sido o rei Briga que a teria fundado, bem como a outras terras algarvias, como Lagos. Assim Tavira teria tido como primeira designação Talabriga, aparecendo mais tarde no Elucidário de Brunswick o termo “Talabricense” como designando o natural de Tavira.

Outros estudiosos, mais apropriadamente, remontam a época da fundação da localidade ao período fenício ou cartaginês, tendo-se desenvolvido mais tarde na época da dominação romana. Aliás, relacionada com esta civilização está a povoação de Balsa, na zona da atual Luz de Tavira, que alguns autores confundiram com a povoação original de Tavira.

Completamente provado é que no período árabe peninsular, Tavira era uma próspera localidade entre as mais destacadas do Algarve e uma notável praça forte a que os árabes chamariam Tabira, corruptela (nalgumas interpretações) do termo Talabriga anterior.

Neste período Tavira estava inserida no Al-Garb, dependia do senhor de Silves, sede da posição árabe mais importante na parte mais meridional do atual Portugal.

Para as forças cristãs, Tavira passa-se no reinado de D. Sancho II, no conjunto de conquistas que a Ordem de Santiago, chefiada por D. Paio Peres Correia, e outras, levaram a efeito em ambas a margens do Rio Guadiana, até à sua foz. É historicamente apontada a data de 1239, apresentando Damião de Vasconcelos (obra citada, inspirado na “Crónica da Conquista do Algarve”, também citada) a data de 1242 para a entrada dos cavaleiros de Santiago na praça. O dia comemorado é o de 11 de junho, dia que foi feriado municipal durante muito tempo.

Na época da sua tomada pelos Cristãos, Tavira era governada por Aben-Fabilla (nome que vem referido no próprio foral), sendo ao que parece, Aben-Afan (ou Ibne Mahfut, ou Mafon) rei de Silves e de todo o Algarve.

Deveria ser Tavira uma importante e próspera vila, inserida num conjunto natural propício ao desenvolvimento simultâneo de várias atividades económicas, tais como o comércio, a pesca, a agricultura e a extração de sal. Reconhecido o carácter comercial das populações árabes que habitavam o Sul do território peninsular, observando os dotes naturais da povoação, não nos é difícil imaginar a sua prosperidade e importância demográfica. Situada nas margens de um rio, próxima da sua foz e do mar, rodeada por extensas terras de cultivo, local de passagem obrigatório para quem se deslocasse entre o ocidente do Algarve (duas vezes ocidente!) e as ricas planícies da Andaluzia, Tavira era povoação rica e afamada entre as melhores.

A conquista aos Mouros, e segundo a crónica citada, foi realizada na sequência da morte de seis cavaleiros da Ordem de Santiago que, estacionados na zona de Cacela, tiveram a infeliz ideia de vir caçar para as proximidades de Tavira, onde foram atacados e mortos por imensos Mouros desta localidade. Com os seis cavaleiros (D. Pedro Pais, Mem do Valle, Damião Vaz, Álvaro Garcia, Estêvão Vasques e Valério de Ossa, ou da Hora – há variantes dos nomes consoante os autores) morreu também um mercador (Garcia Rodrigues) que se quisera juntar a eles no mais aceso da refrega.

D. Paio Peres Correia entrou na vila atrás dos Mouros, como retaliação pelo facto, fazendo um horrível destroço entre a população e tomou-a para os Cristãos e para o Rei de Portugal.

O rei doou a localidade àquela Ordem Militar no ano de 1244, num documento em Latim do qual traduzo “de minha espontânea vontade e de consenso com os meus ricos-homens. Por amor a D. Paio Peres Correia, Mestre da Ordem Militar de Santiago e por muitos bons serviços que aquele Mestre e os mais ilustres da Ordem me fizeram e fazem, dou e concedo (…) para que me honrem e cumpram como ao senhor natural; aquela vila do Algarve, que chamam Tavira”. Esta doação total que chegou a ser confirmada pelo Papa Inocêncio IV em 1245, seria depois contestada, no contexto da querela entre os reis de Portugal e Castela, que só terminou em 1267, com o Tratado de Badajoz. O rei D. Afonso III não a veio a confirmar, e em disputa legal entre a Coroa e a Ordem, veio a ser decidido arbitralmente em 1272 que pertenciam ao Rei as povoações e à Ordem o padroado das igrejas.

Em 1266, D. Afonso III, veio a outorgar à vila a sua Carta de Foral, na mesmo oportunidade de Silves, Faro e Loulé, “com foros, usos e costumes como o da cidade de Lisboa” e no restante do mesmo modo como está expresso (…) na carta de foral de Silves.”

Segundo Damião de Vasconcelos (obra citada, pág. 21), o rei D. Afonso III, para além da concessão do foral, deu também privilégios de couto aos malfeitores que fossem assentar morada nela, com vários privilégios e isenções – aquilo que se designava um couto de homiziados, instituto muito utilizado pelos séculos fora para povoar as zonas mais inóspitas ou mais próximas da fronteira. Desde que não fossem sentenciados por crimes de sangue, era preferível viver livres nestas zonas do que estarem presos nas vilas mais povoadas e prósperas.

Também do mesmo rei recebeu, em 1269, tal como aquelas outras povoações algarvias, a Carta de Foral dos Mouros Forros do Algarve. Contra a garantias de autonomia de justiça e segurança, deviam estes pagar por ano alguns morabitinos e trabalhar nas vinhas e lagares reais.

Estes primeiros tempos da Tavira cristã, como heroicos que são, foram ao longo dos tempos glosados por diversas figuras gradas da nossa literatura. Além de algumas crónicas menores, de autores menos sonantes, aparecem citados nos Lusíadas – Canto VIII, estância XXV – de Luís de Camões, e no poema de Almeida Garrett, D. Branca – Canto VI.

Pelos tempos fora, da época medieval, foi Tavira regularmente agraciada com várias mercês e privilégios que atestam a sua importância.

Muitas famílias nobres nela foram criadas ou nela se fixaram, dando corpo a um conjunto aristocrático dos mais relevantes do País, sendo inúmeros os serviços de elevada índole prestados à coroa e ao Reino por Tavirenses, publicamente reconhecidos pelas autoridades.

Era ainda Tavira um importante centro de Milícias, e formava um forte baluarte de defesa do Sul.

No que respeita à economia da região de Tavira na Idade Média cristã diremos que a sua excelente situação geográfica continuava a fazer da Tavira cristã uma importante rica localidade. O seu porto era local frequentemente utilizado por navios bretões, alemães, biscainhos, ingleses, galegos e de outras procedências, para carregar sal, peixe seco, vinho, frutas secas (figos e passas de uva), azeite, alfarroba, amêndoa, resinas, aguardentes, cera, mel, obras de palma e peixe. Para facilitar, tinha boa disponibilidade de água doce para as embarcações fazerem o necessário aprovisionamento. O rei D. João I facilitou o tráfego de navio estrangeiros em Tavira e garantiu-lhes segurança.

Em 1445 dá-se conta em Lisboa dos problemas que ocasionava a grande aglomeração de navios a carregar sal, dificultando a saída da fruta.

Outros reis vão regularmente concedendo regalias de carácter económico à povoação, que revelam a sua importância e a prosperidade económica.

Conjuntamente são criadas as suas feiras, como a que D. João II concedeu em 1491, com a duração de 49 dias, entre 1 de setembro e 19 de outubro, em honra da Virgem Senhora. Mais tarde, teve esta feira a duração e 3 meses – setembro, outubro e novembro para, com o passar dos tempos vir a reduzir-se e separar em duas a de agosto (Nª Senhora da Boa Morte) e a de outubro (S. Francisco).

São de citar ainda aqui as organizações associativas e seguradoras das atividades marítimas, estabelecidas a partir de D. Dinis, e às quais pertenceram alguns armadores tavirenses. A mais importante de Tavira foi o seu Compromisso Marítimo, que englobava até os mareantes das Fuseta.

Dada a importância do setor artesanal, quer na Idade Média, quer posteriormente, salienta-se a concessão do regimento dos Mesteres de Tavira, dado por D. João III em 1539, importante peça legal para compreender a sua importância.

Finalmente registo o segundo foral (ou foral novo) dado a Tavira pelo rei D. Manuel I, em 20 de agosto de 1504, no mesmo ano em que reformou os restantes do Algarve, exceto Cacela e Porches. O mesmo rei também assinou a carta de elevação de Tavira a cidade, em 16 de março de 1520, confirmada por D. João III em 1525. Passava a ser a segunda cidade existente no Algarve, depois da antiga Silves, e antes de Faro (1540).

Aliás, quer D. Manuel, quer o seu filho D. João III concederam diversos privilégios, regalias e isenções a Tavira na primeira metade do século XVI, em reconhecimento dos serviços prestados à coroa pelos naturais da cidade em viagens, conquista e defesa de praças mouras em Marrocos.

Nessa altura Tavira era a “principal do Reino do Algarve” (citado naquele regimento) e a sexta cidade mais populosa do reino, segundo o Censo de 1527.

Bibliografia

– DESCONHECIDO – “Crónica da Conquista do Algarve”publicada em 1792, e republicada, com comentários e notas, por José Pedro Machado – in Separata dos Anais do Município – VIII – Faro 1979.

– VASCONCELOS, Damião de – “Notícias Históricas der Tavira” – Livraria Lusitana – Lisboa – 1937. Reeditada pela Câmara Municipal de Tavira – 1989

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23.Breve história de Silves

Conhecem-se vestígios materiais da presença humana na zona de Silves desde tempos remotos da História da humanidade. A sua localização geográfica, à beira de um rio navegável até há pouco tempo, a sua relativa proximidade do mar e das rotas marítimas de entrada e saída do Mediterrâneo, a imensa zona interior circundante, fizeram deste povoado um centro de interesse para muitos homens e diversas civilizações.

Estão conhecidas e identificadas, e algumas pedagogicamente guardadas no seu Museu Arqueológico, peças arqueológicas de diversas civilizações desde a Pré- História até à atualidade, passando pelo Neolítico, Idade dos Metais, presença s de Fenícios, Gregos e cartagineses, ocupação romana, pela efémera presença visigótica, pela mais vincada ocupação muçulmana e, por último, pelo domínio e integração no território e na História de Portugal.

Pelo rio Arade subiam desde a sua foz (na atual Portimão), embarcações de todos os povos mediterrânicos que, especialmente pelo comércio, aportavam em todas as costas conhecidas, e em que a Península Ibérica desempenhava um papel importantíssimo devido ao valor dos seus variados produtos minerais. Tal como pelos outros rios da região – Tejo, Sado, Guadiana, Guadalquivir – os barcos aventuravam-se pelo interior até onde era possível, e aí estabeleciam feitorias para a troca dos produtos regionais pelos exóticos. Assim o fizeram em meados do século I a. C. os Fenícios, Gregos e Cartagineses que, não tendo uma presença de ocupação, aqui deixaram vestígios especialmente de atividades comerciais como moedas, vasilhame cerâmico ou de vidro, restos de embarcações, adornos, armas e utensílios de uso quotidiano.

Com aqueles conviveram povos aqui há mais tempo radicados, eventualmente autóctones – os Cónios ou Tartéssicos – que constituíam a civilização ibérica do sudoeste da península, de cujo esplendor nos deixaram relatos escritos alguns viajantes mediterrânicos como Plínio e Estrabão.

Mais duradoura foi a presença e ocupação romanas, entre fins do séc. III a. C e os finais do séc. V d. C. Controlando quase toda a península, foi especialmente o Sul a zona que foi mais romanizada, a todos os níveis: económico, politico-administrativo, social e cultural, como também ainda hoje se pode ver nos vestígios da época. Parece ter sido pacífica a adaptação ao regime romano na região sudoeste peninsular e nomeadamente no atual Algarve português, onde as formas de vida e economia seriam semelhantes.

Dos conturbados e relativamente curtos tempos da presença dos Visigodos e/ou Suevos e Vândalos, restou muito menos para mostrar às gerações atuais.

Mas, sem sombra de dúvida, o passado mais brilhante de Silves foi no período muçulmano, entre os séculos VIII e XIII. Inicialmente dependente, como toda a península, do Califado de Bagdad, passou a depender politicamente de Córdova quando ali se instalou um novo califado em 755, entre os séc. VIII, IX e X. Durante os séculos XI e XII, as diversas cidades da época e da região, como Sevilha, Niebla, Silves, Mértola e Badajoz, alternando com longos períodos de unificação – Almorávidas e Almóadas – aventuraram-se em governos autónomos e muitas vezes rivais entre si, que retiraram força política e militar ao Al-Andaluz e assim proporcionara, o avanço decisivo das tropas e do domínio cristão no sul da península através da chamada Reconquista Cristã. Não tendo a grandeza e o esplendor das grandes cidades árabes da península, como Córdova, Sevilha e Granada, no entanto, Silves (então designada Chelb) era uma notável povoação, sob todos os pontos de vista, sem dúvida a mais importante da sua região. Nela se desenvolveram indústrias, a agricultura de regadio, a pesca, a exploração mineira no interior, e também as artes e a ciência. Comparativamente com a zona cristianizada da época, o Sul islâmico, nomeadamente desde o seu glorioso séc. X era bastante mais desenvolvido e culturalmente mais aberto.

Como vimos atrás, foi o processo de Reconquista que trouxe Silves para o território cristão e português. Não foi de forma rápida nem pacífica. Conquistada uma primeira vez por D. Sancho I em 1189, no mesmo ano de Alvor, com a participação direta de Cruzados da 3ª Cruzada que estavam em trânsito para a Palestina, e que foram aliciados pelo rei de Portugal, viria a cair na posse dos Árabes logo em 1191. A partir desta última data estava o Al-Andaluz unificado sob forte poder Almóada que viria a dominar até 1212 na península. Um dos cruzados participantes na conquista de 1189 relatou-nos as estratégias utilizadas durante o cerco de várias semanas, durante o verão, a violência de que se revestiu o ataque intramuros, e o desgosto em relação à forma como os portugueses dividiram o saque com os mesmos cruzados.

Mas a tendência para empurrar para sul a presença muçulmana era inapelável e, em meados do século XIII, em 1249, Silves passava definitivamente a fazer parte de Portugal, sob as forças combinadas do rei D. Afonso III e do mestre de Santiago, D. Paio Peres Correia que, por aqueles anos, conquistaram com ou sem violência, todos os castelos e povoações do barlavento algarvio e que assim se juntaram ao extremo sotaventino já conquistado no tempo de D. Sancho II pela ação direta daquele mestre e dois seus monges –soldados.

O processo de integração oficial e jurídica no território português não foi fácil, porque ocorreu uma demorada querela entre os Reinos de Castela e Leão e Portugal pela sua soberania, que só veio a ser definitivamente resolvido em 1267, pelo Tratado de Badajoz. Isso explica a demora entre a conquista e a outorga do foral

Recebeu carta de foral em agosto de 1266, como povoação principal do Algarve, num documento baseado no foral de Lisboa de 1179 e que seria ainda o modelo dos forais de Faro, Loulé e Tavira, também emitidos na mesma data. Aplicava as mesmas taxas e coimas pelos crimes cometidos, mas apresenta diversas alterações específicas, nomeadamente identificando os bens que o rei reservava para o seu poder, tais como fornos de pão, salinas, o sal, as taxas sobre o vinho vendido, os moinhos do rio Arade, todos os reguengos de Lagoa e Arrochela, figueirais dos antigos reis mouros, açougues, banhos e fangas, a pesca da baleia e o padroado das igrejas.

Também em 1269 recebeu, tal como aquelas outras povoações algarvias citadas, o chamado foral dos Mouros Forros, que garantia a segurança dos mouros que por cá ficaram depois da reconquista.

Outro problema derivado desta quezília foi a nomeação do bispo de Silves, porque, entretanto, justificava-se a recriação desse bispado (onde antigamente houvera o bispado de Ossónoba – Faro), e era preciso definir em que província metropolitana o bispado devia ser integrado (Braga, por Portugal ou Sevilha por Castela). Ainda ficou sufragânea da arquidiocese de Sevilha até 1394, data em que passou a depender da recém-criada arquidiocese de Lisboa.

Pela mesma altura começavam-se a reconstruir as igrejas das principais povoações algarvias, recuperando as instalações das antigas mesquitas maiores muçulmanas, e das quais a de Silves deveria ser mais majestosa, por se tratar da catedral (igreja onde está a cadeira do bispo).

O fim do domínio muçulmano na região marcou o términus de um longo período de desenvolvimento económico e cultural, ainda que de alguma anarquia política, que ligava ambos os lados do estreito de Gibraltar num amplo contexto cultural e civilizacional.

Silves, no entanto, sob o domínio cristão, continuaria a ser a mais importante povoação do Algarve, mantendo a categoria de cidade e sede de bispado até 1577. A sua Sé Catedral era digna da sua importância e da cidade. Notável e vasto templo de estrutura gótica em grés regional, com grandes colunas e pórtico ogival, com o exterior hoje já marcado pelas intervenções posteriores, nomeadamente após o terramoto de 1755. Forma com o castelo, construído na mesma pedra, o mais imponente núcleo de património histórico-arquitetónico do Algarve. A estes se acrescenta, no séc. XVI, a janela manuelina da Misericórdia e o cruzeiro tardo-gótico-manuelino conhecido por Cruz de Portugal.

O século XVI, porém, mudaria o curso da história de Silves. Em 1577 o bispo de Silves, D. Jerónimo Osório, um grande vulto do humanismo português, mudou a sede da diocese de Silves para Faro, alegadamente por causa dos ares insalubres da cidade, representando esse gesto já um símbolo da perda de importância e influência relativa que Silves estava a sofrer ao longo do tempo. Devido ao assoreamento do rio Arade, e da diminuição da sua navegabilidade, chave da sua dinâmica económica, Silves foi-se tornando uma povoação de interior, cedendo lugar e importância a Portimão e entrando numa prolongada letargia. Depois de uma pouco conseguida experiência industrial na área corticeira, pode-se dizer que são já das últimas décadas um notório rejuvenescimento e uma acentuada dinâmica de desenvolvimento local, que se baseiam no aproveitamento turístico e nas insuperáveis condições para o cultivo dos citrinos, factos que são visíveis por quem hoje a visita.

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22. Breve História de Loulé

No espaço que compõe o território do concelho de Loulé encontramos vestígios da presença humana desde os tempos da pré-história, em todos os períodos marcantes da história de Humanidade (que se pode perfeitamente comprovar na coleção do Museu Municipal da cidade e como se viu na excecional exposição que o Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, teve patente ao público há poucos anos). Temos objetos em pedra do Paleolítico; outros mais diversificados do Neolítico (cerâmica, pedras de mós e outros utensílios para o uso de populações que se estavam a sedentarizar); menires, antas e estelas com a célebre escrita do Sudoeste (que valorizam sobremaneira a história do interior do nosso concelho, e que individualizam esta região em relação a toda a Península Ibérica e Europa), da época em que se trabalhavam os primeiros metais; objetos e estruturas de habitações dos períodos romano e muçulmano, que por cá se mantiveram vários séculos; utensílios, ferramentas, construção civil e militar, igrejas e conventos, documentação de vários tipos, objetos vários dos períodos medieval e moderno, até aos nossos dias.  

Mas a fundação da povoação de Loulé, na sua localização atual, não é tão antiga como os períodos mais remotos atrás citados. Tanto quanto se conhece hoje, Loulé teria sido uma povoação fundada no período muçulmano, uma alcaria com o nome al-Ulyã, implantada algures entre o séc. VIII e IX, de que derivaria o nome de Loulé, e assim se desenvolveu enquanto centro urbano de média dimensão ao longo do período em que os denominados “Mouros” por cá foram dominantes (entre os séculos VIII e XIII). Há também a versão lendária do nome da vila, atribuída ao rei de Leão Fernando I, o Magno, (1037-1065) que teria dito que a árvore que se via sobre as suas muralhas era um loureiro (“Laurus est”), de onde teria derivado o nome de Loulé. Mas essa é a lenda, com certeza menos provável que a designação muçulmana.

Durante a fase muçulmana, principalmente no período almóada (séc.s XII e XIII), Loulé não teria a importância de Silves, a grande cidade árabe do Al Garb, no Al Andaluz, mas rivalizava na sua dimensão e importância económica com Faro e Tavira, num segundo nível de povoações na região.

A sua tomada aos Mouros teria sido provavelmente na primavera de 1249, talvez ainda em março, logo a seguir à tomada de Faro que também é apresentada como tomada nesse mês. A original invocação da sua principal igreja a S. Clemente tem feito alguns pensarem que teria sido conquistada no dia deste santo (23 de novembro), mas é uma situação pouco plausível, porque muito distante da data da conquista de Faro (março de 1249) e, sabe-se também, que os dois lideres da conquista de Faro, depois dessa conquista se afastaram da região: o Mestre de Santiago (D. Paio Peres Correia) já estava em Alcácer do Sal nesse mesmo mês de março, e D. Afonso III estava no Crato em maio seguinte.

A importância semelhante destas povoações algarvias é comprovada pela atribuição simultânea das cartas de foral em 1266, pelo rei D. Afonso III, depois da reconquista em 1249 e da resolução do contencioso com o rei de Castela (Fernando III e Afonso X) sobre o respetivo domínio, que só terminou com o acordo de 1263 e confirmado definitivamente pelo Tratado de Badajoz, de 1267. Igualmente às mesmas povoações foi entregue por D. Afonso III o chamado foral dos Mouros Forros (1269), que garantia a segurança dos mouros que tinham ficado por cá depois da reconquista. Da mesma época é o início da construção das igrejas principais destas povoações, na generalidade dos casos reconstruídas ou adaptadas a partir das antigas mesquitas maiores da era muçulmana (no caso de Loulé a igreja de S. Clemente, em estilo gótico paroquial).

Do foral de Loulé também fica identificado o reguengo de Quarteira que o rei reservou para si e seus sucessores, e que D. João I veio a trocar com Gonçalo Nunes Barreto (fidalgo descendente de figuras importantes das cortes de D. Sancho II e D. Afonso III, cujo ramo de família se teria radicado em Loulé depois da reconquista), em 1413, recebendo o senhorio de Cernache-Coimbra, e dando assim origem ao Morgado de Quarteira (zona da atual Vilamoura), que duraria por muitos séculos.

É provável que a povoação tenha sofrido alguma quebra com o fim do domínio árabe, naturalmente com o estrangulamento das linhas comerciais entre o litoral sul do Garb-Al-Andaluz e o Norte de África. Durante muitos séculos o comércio inter-regional fora um elemento de desenvolvimento económico que seria afetado com a conquista cristã e a distância e dificuldades de comunicação com o Centro e Norte de Portugal não se traduziriam no imediato numa substituição de mercado.

No entanto, a pouco e pouco, ao longo do período medieval cristão, Loulé foi-se estruturando como um importante centro económico da região, essencialmente baseado na produção agrícola (fruta, vinho, cereais, frutos secos, azeite) na criação de gado, no artesanato e na pesca, cujos produtos serviam para o consumo interno, mas também para o abastecimento de outras povoações da região e até para a exportação, como é o caso dos figos secos e passas de uva. Deste período, especialmente importante foi a época da revolução de 1383-85, em que Loulé vincadamente assumiu o lado do Mestre de Avis, contra os interesses de D. Beatriz e D. João I de Castela, com muitas outras praças algarvias, mas que não deixou de ser um risco enfrentado, dada a desproporção, à partida, das forças em contenda. Os procuradores de Loulé marcaram posição em diversos atos públicos, conforme o atestam as atas de vereação da época, aliás, as mais antigas atas municipais portuguesas conhecidas (desde 1378), e que, por isso mesmo, representam um dos maiores símbolos do património histórico de Loulé.

Na fase dos Descobrimentos, Loulé manteve uma importância grande, principalmente no período quatrocentista, como retaguarda de abastecimento de víveres para as praças do Norte de África, para o acolhimento de doentes e feridos dessas guerras (para o que D. Afonso V  terá criado em Loulé o primeiro hospital do Algarve – 1471), e marca também um papel histórico na plantação de cana-de-açúcar que, vinda do Mediterrâneo, aqui terá sido pela primeira vez plantada no início do séc. XV (provavelmente na Horta d’ El-rei), no contexto de um contrato de um contrato de arrendamento celebrado com o mercador genovês João da Palma, em 1404, e daqui levada para o morgado de Quarteira e depois cultivada em abundância na ilha da Madeira e no Brasil (séc. XVI).

Recebeu foral novo do rei D. Manuel I, em 1504, documento a partir do qual se pode fazer o repositório económico local, com as taxas cobradas pelos diversos negócios.

Nos séculos seguintes, o papel histórico de Loulé não terá sido tão notório, mas manteve a sua importância económica regional, sede de um grande concelho e conciliando a vertente agrícola com a do comércio, que ao longo dos séculos se foi afirmando. Neste período, outras povoações do Algarve foram ganhando importância, especialmente as situadas no litoral, como Faro, Lagos e Tavira, depois também Portimão e Albufeira, enquanto Loulé e Silves, mais interiores, perderam protagonismo.

Do séc. XIX diremos que a economia louletana foi aprofundando a atividade comercial, criando um importante núcleo social burguês que foi dando conta da sua existência desde o período da implantação do liberalismo e guerra civil dos Liberais contra Absolutistas (1828-34) e o período subsequente, em que a sua posição marcadamente liberal sofreu os ataques das guerrilhas miguelistas do Remexido, acoitadas no interior serrano do concelho, onde se destaca o massacre de 24 de julho de 1833, com a morte de dezenas de pessoas às mãos dos guerrilheiros. Em 1873 foi aberta a Av. Marçal Pacheco, em direção à estrada que liga à capital algarvia, substituindo o caminho tradicional para sul que saía da porta de Faro.

Do séc. XX gostaria de destacar em Loulé o dinamismo urbanístico, com a abertura da Avenida José da Costa Mealha, da década de 1920, pontuada de edifícios marcantes, alguns dos quais já desaparecidos, destacando o Cineteatro Louletano do final dessa década. Depois, na segunda metade deste século, o incremento do turismo trouxe nova dinâmica desenvolvimentista, não propriamente na sede do concelho, mas na faixa litoral do mesmo (Quarteira, Vilamoura, Vale do Lobo, Quinta do Lago, etc.) que se refletiram também na sede do concelho.

Loulé manteve durante estes séculos a categoria de vila, uma importante vila, que a fazia ser considerada a “sexta cidade do Algarve” até 1988, data em que passou a ser cidade, com as respetivas cinco torres nas suas armas.

BIBLIOGRAFIA

ACTAS das VEREAÇÕES de LOULÉ – Vol. I – Câmara Municipal de Loulé – 1984

HERCULANO, Alexandre“Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines” – Vol. I – Lisboa, 1856 – pág. 706-708 – transcrito de: ANTT – Doações de D. Afonso III – Livro I – fl. 82v-83v (Foral de Silves, Faro, Loulé e Tavira);

HERCULANO, Alexandre“Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines” – Vol I – Lisboa, 1856, pág. 715-716 – transcrito de: ANTT – Doações de D. Afonso III – Livro I – fl. 97v (Foral dos Mouros Forros).

MARTINS, Isilda Maria Pires – “O Foral de Loulé de 1266” – Câmara Municipal de Loulé – 1989

OLIVEIRA, Luís Filipe – “A Conquista, o padroeiro e os priores de Loulé” – Univ. Algarve /IEM

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21. Castelo e muralhas de Loulé

Pensamos que o castelo e muralhas de Loulé terão sido construídos no período muçulmano, formando um perímetro de torres e muros que defendiam o burgo das ameaças externas, nomeadamente a partir do final do século XII, quando se começaram a concretizar as ameaças das forças cristãs portuguesas e castelhanas contra a região sul e sudoeste da península, e que viria a perpetuar o nome de Al Garb (que em árabe significa o ocidente). Aliás, em relação à palavra castelo, tradicionalmente a população de Loulé chama de “castelo” ao conjunto principal de torres e muralhas que se situam a NW do centro histórico, embora isso também não seja consensual.

Nesse espaço, intramuros, se situava também a alcaidaria da vila, zona habitacional e militar, onde residia o alcaide, e que foi ao longo dos séculos visitada por alguns reis. Loulé tinha uma cintura de muralhas defensivas que, em alguns pontos mais vulneráveis, e junto às suas portas, eram reforçadas por torres e torreões de diversos tipos, como se pode confirmar nas ainda existentes ou nalguns alicerces visíveis (ex. na Capela de Nª Senhora da Conceição e entrada para o pátio da alcaidaria).

Conhecemos hoje quase perfeitamente o perímetro das muralhas que delimitavam a primitiva povoação, o seu atual centro histórico, formando um polígono irregular de quatro lados, entre a Praça da República, a Av. Marçal Pacheco, a Rua Engº Duarte Pacheco (antiga Rua da Corredoura) e a antiga Horta d’El-Rei. Este perímetro tem uma dimensão significativa para a época, de cerca 940 m, circundando uma área de cerca de 5 ha, que formavam o núcleo central da vila, ao qual se foram acrescentando, ao longo do tempo outros bairros exteriores – mouraria, judiaria, arrabalde.

O centro religioso da povoação era a igreja matriz, dedicada depois da reconquista (1249) a S. Clemente1, e o seu espaço envolvente, onde no seu adro se situava o primitivo cemitério de Loulé, e onde hoje se situa o jardim dos Amuados. O templo teria sido uma mesquita muçulmana, no espaço da qual se reconstruiu a igreja, e do qual restará ainda a torre sineira, antiga almádena ou minarete, onde o almuadem chamava os crentes às orações diárias.  A igreja foi uma das primeiras a ser construídas na região depois da reconquista cristã, da época da sé de Silves (primeira catedral do Algarve) e das de Santa Maria de Faro (depois Sé de Faro) e de Santa Maria do castelo em Tavira. A importância desta igreja no período medieval fica demonstrada por integrar a vintena de instituições eclesiásticas que participaram na petição ao Papa Nicolau IV, em 1288, para a criação de um Estudo Geral, a expensas dessas igrejas, que serviu de base à criação, por D. Dinis, da atual Universidade de Coimbra.

Na mesma época, e extramuros, foi construído o Convento da Graça, inicialmente como casa da Ordem dos Frades Menores (Franciscanos observantes), cujas ruínas da sua igreja foram recentemente requalificadas e que são também dignas de uma visita. Ao longo dos séculos foram sendo construídos outros conventos na vila, masculinos e femininos, que funcionaram até 1834, data da sua extinção pelo Liberalismo – Convento dos Grilos (Hospital /Misericórdia), Convento do Espírito Santo (feminino), e de Santo António dos Olivais (Capuchos).

As muralhas da cidade foram, segundo o modelo árabe e medieval, construídas em pedra ou em taipa, maioritariamente nesta última, consoante as localizações e a altura necessária. Ou até nos dois materiais em simultâneo, com a base em pedra e a parte cimeira em taipa. É isso que ainda hoje se vê ao longo do perímetro detetável de pano de muralha ou das torres. Podemos confirmar os dois tipos ainda de pé.

Ao longo da muralha abriam-se diversas portas para o exterior, que tomaram o nome dos bairros ou estradas para onde apontavam – de Faro, da Vila, do Concelho, de Portugal, de Silves, Nova. A sua localização exata não está hoje assinalada na maior parte delas, e a sua própria designação também não é consensual2.

Em 1422, D. Pedro de Meneses, mandou recuperar a muralha da vila, que lhe daria a imponência de todo o seu perímetro. 

Depois, ao longo dos séculos, as muralhas de Loulé foram sendo vítimas das intempéries e tremores de terra, destruídas ou alteradas e, em face da decrescente necessidade da sua existência, não só pela maior paz interna e externa, mas também pela introdução da artilharia, que as tornava obsoletas, foram perdendo a sua importância, e deixadas ao abandono. Já em 1617-18 a visita inspetiva de Alexandre Massaii dava conta de que a maior parte dos muros de taipa da muralha se encontravam danificados e/ou caídos3.

Grandes extensões de muralha passaram a ser incorporadas nas construções que se foram anexando, ou pior, foram destruídas, para dar lugar a novos arruamentos ou construções, como é o caso mais notório do Mercado Municipal, joia neoárabe do início do séc. XX, mas para cuja construção foi derrubado um significativo troço da cerca medieval. Capelas, solares e casas particulares foram ganhando prioridade em relação à cerca.

Aquilo que resta da estrutura defensiva de Loulé está garantida como Monumento Nacional desde 28 de junho de 1924.

Passamos então a uma descrição/passeio virtual das muralhas de Loulé, começando na zona que como vimos é conhecida por castelo, no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, antes de fazermos o percurso pedestre:

Começamos na rua da Barbacã, (nome que designa a cerca exterior à muralha, que depois desapareceu), onde vemos uma torre albarrã (separada da muralha), em alvenaria, depois outra torre adossada ao exterior da muralha, e uma terceira, de grandes dimensões, sobre a muralha. Estas três torres situam-se junto da alcaidaria e ligam-se entre si por um caminho de ronda e escadas para cada uma delas. Foram reparadas nos anos 1940, pelos Monumentos Nacionais, segundo um plano do Ministério do Engº Duarte Pacheco. As ameias superiores não existiam antes disso, como ainda é possível confirmar em fotos antigas.

Seguindo em sentido contrário aos ponteiros do relógio, na zona da antiga Horta d’El-Rei, que ficou mencionada no foral de 1266, destacamos a mais recente fonte das Bicas Velhas, o edifício recentemente estudado e em recuperação, que seria um banho público muçulmano (hamman), e alguns vestígios da muralha nas traseiras de muitas habitações que se foram adossando aos muros ao longo dos séculos, num bairro que inicialmente seria a judiaria da vila. O final deste lado, sob o Jardim dos Amuados, está mais conservado e visível, até à aresta do polígono. Aqui se situavam as portas de Silves e a Nova. (Conforme esteve assinalado num painel de azulejos do Restaurante “A Muralha”).

Já na Rua do Engº Duarte Pacheco destacamos um torreão em taipa, conhecido como Torre da Vela, que servia de atalaia permanente para os ataques mouros vindos da costa ou na costa, pois fazia contacto visual com outra torre em Quarteira que emitia sinais de fumo em caso de ameaça, quando “havia mouro na costa”. Pelo interior da muralha há ainda visitável, um caminho de ronda que ligava outras torres, a do meio, desaparecida e outra, antes da rua 1º de dezembro ainda visível. A meio abria-se a “porta de Faro”, que ligava à estrada para Faro, que foi mudada quando no séc. XVII se construiu a capela de Nª Srª do Pilar e o solar adjacente.

 Após nova inversão de cerca de 90º, a linha de muralha passava entre a atual Av. Marçal Pacheco e a Rua 1º de Dezembro, indo para norte até ao antigo Largo do Carmo, onde existia outra porta importante, a “porta da vila (ou do sol)”, onde depois foi construída outra capela – Nossa Senhora do Carmo, que foi destruída em 1873, talvez para a abertura da Av. Marçal Pacheco. Teria também sido destruída parte da muralha, conhecendo-se hoje a viragem para oeste (nuns alicerces que estão no subsolo de uma antiga oficina de bicicletas e atual parafarmácia), a que se juntou depois também a destruição de outra parte por causa da construção do Mercado Municipal, em 1907-08.

A última face do polígono seguia na continuidade da atual Praça da República, na linha de fachada das casas alinhadas com a atual Câmara Municipal e onde se abria uma pequena porta (celebrada com o nome de Rua do Postigo – antigo nome da Rua 9 de Abril), e se alinhava um significativo pano de muralha com pelo menos dois torreões. O primeiro deles, talvez a base onde agora está o relógio, tinha junto a si outra porta principal, (a do “Concelho”). No final desta linha abria-se a “porta de Portugal (ou porta da Vila)” que, embora aberta num conjunto provavelmente em cotovelo, se situava em frente à atual Rua de Portugal (da antiga estrada para Portugal) e sobre a qual se erigiu também outra capela, dedicada a N. Srª da Conceição (como se pode ver no alicerce visível no solo desta capela). Aí junto havia também outra torre, provavelmente onde no início do séc. XX consta que ainda existia um moinho de vento sobre ela.

Notas:

  1. S. Clemente – terceiro papa de Roma, de finais do séc. I, desconhecendo-se a razão desta invocação, sendo pouco plausível que, como se pensou durante muito tempo, tenha sido porque no seu dia comemorativo se teria conquistado a praça militar – 23 de novembro.
  2. M. Fátima Botão e Isilda P. Martins – obras citadas.
  3. Alexandre Massaii – obra citada

Bibliografia básica:

BOTÃO, Maria de Fátima – “A construção de uma identidade urbana no Algarve medieval – O caso de Loulé” – Ed. Caleidoscópio – 2009

– MARTINS, Isilda Pires – “O Castelo de Loulé” – Ed. CML – 1984

– MASSAI; Alexandre – “Descripção do Reino do Algarve …” – Alexandre Massai – 1617-18. Publicado em 1621. Em Lívio da Costa Guedes “Aspectos do Reino do Algarve nos séc. XVII e XVIII. A Descrição de Alexandre Massaii”. Arquivo Histórico Militar. Separata do Bol.do Arquivo Histórico Militar – 1986. Impresso em 1988.

MARTINS, Isilda Pires e MATOS, José Luís de – “As Muralhas de Loulé – Ed. CML – 1990;

OLIVEIRA, F. X. Ataíde – “Monografia do Concelho de Loulé” – Ed. Algarve em Foco – 1986

SIMÕES, João Miguel – “História Económica, Social e Urbana de Loulé” – Caderno do Arquivo Municipal de Loulé – 2012

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20. A narrativa da tomada de Loulé e Aljezur aos Mouros*

Para concluir estas transcrições da Crónica apresentamos hoje o que dela consta sobre a tomada de Loulé e Aljezur.

Chamo a atenção novamente para alguma falta de rigor espacio-temporal nas descrições, onde o autor, que escreve bastantes anos depois dos factos, parece mais preocupado com o elogio à ação do Mestre de Santiago, D. Paio Peres Correia, do que com outros protagonistas, nomeadamente o Rei D. Afonso III, e com a realidade dos factos. Enfim, por aqui passa a diferença entre a crónica medieval e a verdadeira História.

“Depois que El-Rei tomou a vila de Farão, logo dali a poucos dias partiu o Mestre com sua companha e foi-se lançar sobre Loulé, e não esteve o cerco muito sobre ele que logo o não tomassem e porque o Mestre corria alguma gente nas pelejas e combates das vilas, disse-lhe um dia El-Rei, falando com ele: Mestre! Muito me pesa pelos cavaleiros que vos morreram na conquista destes lugares, porque eram todos mui estremados homens! Senhor, disse o Mestre. Não tomeis dor pelos mortos, porque morreram no serviço de Deus e salvação das suas almas! E logo o Mestre partiu de Loulé e foi-se lançar sobre Aljezur; e quando os Mouros souberam que Farão e Loulé e os outros lugares eram tomados, deram-se logo ao Mestre com a condição que se deu Farão; e o Mestre, pelo cansaço que havia recebido, ele e as suas gentes, nos outros lugares, aprouve-lhe com isto e de se tomar logo Aljezur, como vos dissemos; e Deus lhe deu todos estes vencimentos, porque sabia quão de vontade o Mestre era no seu santo serviço”.

Grafia atualizada.

*Segundo a “Crónica da Conquista do Algarve”, de autor ainda não completamente identificado, provavelmente do séc. XIV, publicada em 1792, e republicada, com comentários e notas, por José Pedro Machado – Separata dos Anais do Município – VIII – Faro 1979.

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19. A narrativa da conquista de Faro- 1249*

(…) E então que El-Rei D. Afonso III recebeu estas cartas de seu sogro que a Rainha sua mulher lhe trouxe, mandou logo aparelhar suas gentes e foi-se logo com grande pressa ao Algarve, e foi por Beja e daí a Almodôvar, do campo de Ourique, e passou a serra pelas Cortiçadas, e encaminhou direito a Farão do senhorio do miramolim rei de Marrocos; e tinha a vila por ele um alcaide que tinha o nome de Aloandre, e estava aí um almoxarife de El-Rei que tinha o nome de Alcabrarão; estes haviam grande corrida de gentes e mantimentos porque dentro do alcácer estava uma fusta [barco] por um arco grande que era feito no muro e tiravam aquela fusta cada vez que queriam, e mandavam recado a seu Rei Miramolim, e traziam nelas gentes e todas as coisas que tinham necessidade; e porque o lugar era bem fortalecido de armas e de tudo o que lhe cumpria, estavam os Mouros muito esforçados de maneira que prezavam muito pouco os Cristãos.

Quando o Mestre D. Paio Peres Correia1, que era vassalo de El-Rei D. Afonso, soube que ia lá, foi aguardá-lo entre Loulé e Almodôvar, e na vila de Salir e ali se viu El-Rei com ele, e as gentes todas juntas foram cercar Farão e puseram o arraial sobre ele, e repartiram seus combates desta maneira:

– o combate de El-Rei D. Afonso foi no castelo, e um lanço da vila até uma porta que agora chamamos das freiras;

– e o combate do Mestre, deste lanço até à porta da vila;

– e mandou El-Rei um Rico-homem, que tinha nome D. Pero Escrenho, em outro lanço do muro até uma torre que depois chamaram de João de Aboim;

– e este João de Aboim tinha outro lanço, da torre que depois chamaram de seu nome até ao combate do alcácer de El-Rei.

Fora estas capitanias, eram aí outros com eles, a saber: D. Fernão Lopes, prior do Hospital; o Mestre de Avis; o Chanceler- mor D. João de Unhão; Mem Soares e João Soares; e Egas Lourenço. E desta maneira tinha El-Rei combatida a vila muito fortemente, de dia e de noite, e mui poucas vezes lhe davam lugar; e tomou-lhe El-Rei o mar com a frota e atravessou-lhe no canal do rio navios grossos muito bem armados e ancorados da parte de fora, contra o mar, porque se algumas galés de mouros viessem que lhe não pudessem fazer mal e lhes fosse embargada a parte do rio; e assim ficou o lugar todo cercado ao redor.

Quando os Mouros viram que o porto de mar assim era tomado e que El-Rei assim os afincava tanto de cada parte,  posto que bem se defendessem, entenderam que lhes não havia de servir de nada; e andando em acordo, falou El-Rei um dia com o alcaide Aloandre e com o almoxarife Alcabrarão, que eram os maiores do lugar, como já vos dissemos; e foi El-Rei com eles falando até que se acolheram dentro do alcácer, e levando os que quis, que seriam até dez cavaleiros, e o castelo foi livre dos mouros e buscado todo pelos cavaleiros de El-Rei; e não ficou com eles gente nenhuma, salvo estes dois mouros que deixámos dito.

E isto não fez El-Rei saber ao Mestre nem aos outros que tinham os combates; e estes, não sabendo disto, foi El-Rei achado menos e houvera de ser grande mal, e por El-Rei não faltar do que tinha prometido, foram notícias ao Mestre, e a outros filhos de algo do arraial, que cuidaram que os mouros do castelo tinham feito algum dano a El-Rei, e que o mataram ou o prenderam; e por isso, levantaram um ruído tão grande, que por força e a mal de seu grado, os mouros não lhes atirando setas nem pedras, os Cristãos passaram a cava e a barra e juntaram-se com um muro; e a gente do Mestre carregava lenha à porta da vila para lhe porem fogo, e por esta razão padeceriam muitos dos Cristãos.

E quando El-Rei viu aquele ruído admirou-se muito do que podia ser, e como soube o que era, saltou em cima de uma torre, e mostrou as chaves na mão, que já tinha o castelo, e mandou dizer ao Mestre e aos outros que estivessem quietos e se mantivessem fora, que já era em acordo com os Mouros.

O mouro Alcabrarão saiu do castelo e então mandou El-Rei apregoar pelo arraial que ninguém fizesse mal a mouro ainda que andasse fora entre eles, nem entrassem pelas portas da vila, ainda que abertas as achassem, salvo o Mestre e os outros capitães que entrassem dentro com aqueles que quisessem, e estivessem sobre as portas do combate que cada um tinha.

E o acordo que El-Rei fez com os Mouros foi desta maneira: que eles lhe fizessem aquele mesmo foro que em todas as coisas faziam ao seu rei, e que eles houvessem todas as suas casas, vinhas e herdades da mesma maneira, e que El-Rei os defendesse e amparasse, assim dos Mouros como de outras quaisquer gentes que mal lhes fizessem; e os que quisessem ir para alguns lugares de mouros, que se fossem livremente com todas as coisas; e que os cavaleiros mouros ficassem por seus vassalos e que andassem com El-Rei quando lhe cumprisse, e ele que lhes fizesse bem e mercês.

Desta maneira houve El-Rei a vila de Farão no mês de Janeiro da era de mil e duzentos e trinta e oito anos2.

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1 Mestre da ordem Militar de Santiago da Espada, que se notabilizou nas conquistas das vilas algarvias

2 Mais uma vez a Crónica, escrita muitas décadas depois dos factos, não é precisa nas datas e locais: Faro foi tomada aos Mouros em 1249.

Grafia atualizada.

*Segundo a “Crónica da Conquista do Algarve”, de autor ainda não completamente identificado, provavelmente do séc. XIV, publicada em 1792, e republicada, com comentários e notas, por José Pedro Machado – Separata dos Anais do Município – VIII – Faro 1979.

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