34 – As Torres de Vigia e Fortificações Militares do Sotavento Algarvio

A exposição marítima do litoral algarvio aos contactos com o mundo mediterrânico e o norte de África foram, desde a Antiguidade, muito importantes para a vida económica e cultural da região. O mar era mesmo a principal via de contacto do Algarve com o exterior, incluindo com o centro e norte do país, até ao séc. XIX. Mas também havia o lado negativo dessa mesma exposição: a concretização de frequentes assaltos da pirataria moura aos campos e localidades litorais algarvios, com a respetiva pilhagem de produtos locais e, pior que isso, com o rapto de pessoas encontradas, o qual dava origem frequentemente a um posterior resgate.

Ao longo da Idade Média e Moderna, esses assaltos eram tão frequentes que ficaram no imaginário das populações, com as suas lendas (ex: Lenda da Moura Cássima), expressões populares (ex: “Há mouro na costa”), e receios coletivos que perduraram até aos nossos dias.

Para fazer face a este problema, o poder político e militar da região, em complemento com as edificações e forças militares das praças existentes, investiu na construção de torres de vigia e fortificações na costa, que pudessem dar o alerta da chegada de piratas mouros (marroquinos ou argelinos), e consequentemente dar a resposta adequada para os combater e expulsar. No caso das torres de vigia (ou de vela, como eram popularmente designadas), sempre que eram avistadas embarcações suspeitas na costa, os vigilantes podiam comunicar por sinais de fumo com as guarnições terrestres, e assim se iniciava o combate aos intrusos.

Considerando nesta apresentação apenas a zona do sotavento algarvio, de Faro até ao Guadiana, eram várias as construções deste tipo que existiam, e que ainda se podem ver na sua maioria, apesar de algumas estarem mal conservados, nomeadamente as pequenas torres de vigia. A seguir faremos a sua breve descrição, com base no nosso conhecimento pessoal, e nas publicações identificadas nas Notas Bibliográficas.

Em Faro, a área da cidade velha era ela própria um elemento de defesa contra a chegada de qualquer tipo de inimigos, incluindo de piratas. A linha de muralhas bem junto à água da ria cumpria bem esse papel, evoluindo ao longo do tempo e adaptando-se às novas armas, nomeadamente à artilharia na Idade Moderna. Mais acima, na zona mais alta de Faro, erigiu-se uma torre de vigia em 1355, no tempo de D. Afonso IV – a torre de Santo António do Alto – que igualmente tinha funções de avistamento e controlo da navegação que entrasse na ria, em complementaridade com a linha de muralhas, em baixo.

Mais para leste, na zona de Marim, território desde cedo relevante em termos económicos, e que o rei D. Afonso III reclamou para si no foral de Faro (1266), foi erigida uma outra torre, conhecida como Torre de Marim, de maiores proporções, no reinado do seu filho e sucessor D. Dinis, que segue o modelo de outras torres militares existentes no país, desse período. Terá sido construída a partir de 1282, nos terrenos da Quinta de Marim, que ao longo dos tempos foi sendo concedida por aforamento régio a várias personalidades conhecidas do Algarve, onde se incluem: Pedro Tomás; Afonso Pestana; Gomes Lourenço do Avelar, alcaide de Tavira; João Garcia; o almirante Lançarote Pessanha; Rui Valente. Depois foi vendida em 1554 a Francisco Gil do Lugo, fidalgo (…). Mais tarde, após o terramoto de 1755, com a torre bastante danificada, foi parcialmente demolida pelo seu proprietário de então, João Carlos Miranda Horta Machado, ficando com o aspeto que tem hoje. No século XX surge-nos na posse do Dr. João Lúcio Pousão Pereira e seus descendentes1.

Um pouco mais para leste, surge-nos uma outra torre, de menores dimensões, circular, apenas com a função de vigia sobre a barra da Fuseta – a Torre de Bias. Tem o formato do corpo de um moinho de vento, e hoje está em ruínas, mas é facilmente reconhecível. Na mesma zona há registos de outros nomes de torres de atalaia: Alfanxia, Quatrim, Amoreira, Torrejão.

Mais adiante, também debruçada sobre a ria Formosa, no sítio do Pinheiro, na projeção da Luz de Tavira, vamos encontrar outra torre do mesmo tipo e função – a Torre d’Aires (ou de Aires Gonçalves).

Já na zona da cidade de Tavira, para além da própria muralha e castelo da cidade, procurada por muitas embarcações para fins comerciais e de abastecimento de água potável, há registo de várias torres de defesa – a Torre do Mar, junto à entrada sul da ponte, e outras torres-atalaia – a Atalaia-Grande e a Atalaia-pequena; e a torre de “Nuno Pereira”. Mais assinalável e mais perto da Ria Formosa, encontramos os vestígios de um forte de cinco baluartes que se começou a construir no tempo de D. Sebastião (1557-1578) – o forte de Santo António ou do Rato.  A descrição que dele deixa Alexandre Massay em 1617, apresenta-o com cinco baluartes, três virados para o mar e dois para terra, dos quais hoje só se podem confirmar os três do lado do mar. A finalidade da sua construção – a luta contra a pirataria moura – não foi efetiva durante muito tempo, porquanto as constantes mudanças da linha costeira provocaram a mudança da barra de Tavira mais para leste, e tornaram obsoleta esta construção.

Por isso é que em 1670 o príncipe regente D. Pedro (futuro D. Pedro II) mandou construir outra fortaleza, também de grandes dimensões, e com linhas próprias do século XVII, no sítio da Gomeira (nas proximidades da atual povoação das Cabanas de Tavira) – o forte de S. João (Baptista) da Barra de Tavira, ou da Conceição2. Tem uma planta em estrela de quatro pontas, estilo Vauban, onde se situam outros tantos baluartes, que se ligam à praça de armas central. Foi reedificado em 1793, depois desativado em 1897, e é propriedade privada desde 19053.

Do mesmo tipo do de S. João, mas anterior, é o forte de Cacela-a-Velha, construído sobre as antigas muralhas medievais que rodeavam a vila antiga e a sua igreja matriz, preparado já para a guerra de artilharia, e com uma vista soberba sobre a mesma Ria Formosa, no seu troço final mais a leste. O aspeto atual é o resultado de muitas adaptações, com as últimas obras datadas de finais do séc. XVIII (reinado de D. Maria I).

Para finalizar esta breve descrição poderemos ainda destacar o forte de S. Sebastião, em Castro Marim, uma fortaleza de dimensões superiores às restantes aqui apresentadas, e que fazia frente ao inimigo castelhano, mas também à pirataria que ousasse subir o rio Guadiana. Data de meados do séc. XVII (D. João IV), com cinco baluartes numa planta poligonal adaptada ao terreno.

_______________________________

Notas Bibliográficas:

1   Cf. MARTA, José – “Da Torre de Marim a Olhão-Subsídios para a sua História” – Olhão – 2004.

2   Cf. ANICA, Arnaldo – “Tavira e o seu Termo” – Tavira – 1993

3   Cf. MAGALHÃES, Natércia – “Algarve – Castelos, Cercas e Fortalezas” – Ed. Letras Várias

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33B – Frades e Barões em Almeida Garrett

Almeida Garrett – “Viagens na Minha Terra

CAPÍTULO XIII

Dos frades em geral.

Frades… frades… Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando. No ponto de vista artístico, porém, o frade faz muita falta.

Nas cidades, aquelas figuras graves e sérias com os seus hábitos talares, quase todos pitorescos e alguns elegantes, atravessando as multidões de macacos e bonecas de casaquinha esguia e chapelinho de alcatruz que distinguem a peralvilha raça europeia — cortavam a monotonia do ridículo e davam fisionomia à população.

Nos campos o efeito era ainda muito maior: eles caracterizavam a paisagem, poetizavam a situação mais prosaica de monte ou de vale; e tão necessárias, tão obrigadas figuras eram em muitos desses quadros, que sem elas o painel não é já o mesmo.

Além disso, o convento no povoado e o mosteiro no ermo animavam, amenizavam, davam alma e grandeza a tudo: eles protegiam as árvores, santificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solenidade.

 O que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os substituíram. É muito mais poético o frade que o barão. O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote da sociedade velha. O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova. Menos na graça… Porque o barão é o mais desgracioso e estúpido animal da criação. Sem excetuar a família asinina que se ilustra com individualidades tão distintas como o Ruço do nosso amigo Sancho, o asno da Pucela de Orléans e outros. O barão (Onagrus baronius, de Linn., L’âne baron de Buf.) é uma variedade monstruosa engendrada na burra de Balaão, pela parte essencialmente judaica e usurária da sua natureza, em coito danado com o urso Martinho do Jardim das Plantas, pela parte franchinótica e sordidamente revolucionária do seu carácter.

O barão é, pois, usurariamente revolucionário, e revolucionariamente usurário. Por isso é zebrado de riscas monárquico-democráticas por todo o pêlo. Este é o barão verdadeiro e puro-sangue: o que não tem estes caracteres é espécie diferente, de que aqui se não trata.

Ora, sem sair dos barões e tornando aos frades, eu digo: que nem eles compreenderam o nosso século nem nós os compreendemos a eles… Por isso brigámos muito tempo, afinal vencemos nós, e mandámos os barões a expulsá-los da terra. No que fizemos uma sandice como nunca se fez outra. O barão mordeu no frade, devorou-o… e escoiceou-nos a nós, depois.

 Com que havemos nós agora de matar o barão? Porque este mundo e a sua história é a história do «castelo do Chucherumelo». Aqui está o cão que mordeu no gato, que matou o rato, que roeu a corda, etc., etc.: vai sempre assim seguindo.

Mas o frade não nos compreendeu a nós, por isso morreu, e nós não compreendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de morrer. São a moléstia deste século; são eles, não os jesuítas, a cólera-morbo da sociedade atual, os barões. O nosso amigo Eugénio Sue errou de meio a meio no «Judeu Errante» que precisa ser refeito. Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não compreender, a nós, ao nosso século, às nossas inspirações e aspirações: com o que falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade, uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo lhe não servia nem o servia.

Nós também errámos em não entender o desculpável erro do frade, em lhe não dar outra direção social, e evitar assim os barões, que é muito mais daninho bicho e mais roedor. Porque, desenganem-se, o mundo sempre assim foi e há de ser. Por mais belas teorias que se façam, por mais perfeitas constituições com que se comece, o status in forma-se logo: ou com frades ou com barões ou com pedreiros-livres se vai pouco a pouco organizando uma influência distinta, quando não contrária, às influências manifestas e aparentes do grande corpo social. Esta é a oposição natural do Progresso, o qual tem a sua oposição como todas as coisas sublunares e superlunares; esta corrige saudavelmente, às vezes, e modera a sua velocidade, outras a empece com demasia e abuso: mas, enfim, é uma necessidade.

Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a oposição dos frades que a dos barões. O caso estava no saber conter e aproveitar. O Progresso e a Liberdade perderam, não ganharam. Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades — não dos frades que foram, mas dos frades que podiam ser. E sei que me não enganam poesias; que eu reajo fortemente com uma lógica inflexível contra as ilusões poéticas em se tratando de coisas graves. E sei que me não namoro de paradoxos, nem sou destes espíritos de contradição desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca estão contentes com o que é. Não, senhor: o frade, que é patriota e liberal na Irlanda, na Polónia, no Brasil, podia e devia sê-lo entre nós; e nós ficávamos muito melhor do que estamos com meia dúzia de clérigos de requiem para nos dizer missa; e com duas grosas de barões, não para a tal oposição salutar, mas para exercer toda a influência moral e intelectual da sociedade — porque não há de outra cá.

(…)

Bibliografia:

https://bibliotecaaefga.files.wordpress.com/2019/07/viagens-na-minha-terra.pdf

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33A – Frades e Barões em Almeida Garrett

Saio hoje da minha área regional sulista para um plano, diria nacional, de um texto conhecido e muito interessante do ponto de vista literário e histórico.

Algumas das páginas mais ricas da literatura portuguesa são, com certeza, as do Capítulo XIII das Viagens na Minha Terra” de Almeida Garrett, em que ele discorre sobre os frades e os barões do seu tempo, em meados do século XIX.

Esta obra-prima do romantismo português foi publicada pela primeira vez em 1846, relatando uma viagem pelo vale do Tejo, entre Lisboa e Santarém, datada de 1843 no texto. Mas não é pela descrição do percurso que vimos agora a este tema, mas sim pela análise mordaz e assertiva que faz à sociedade do seu tempo, criticando a nova situação politico-social, em que após a guerra civil (1832-34), entre Absolutistas (Miguelistas) e Liberais, e com a legislação de Joaquim António de Aguiar (1834), o relevo anterior que tinha tido o Clero, nomeadamente o regular (monges e frades), dera lugar à Alta Burguesia que se tinha apropriado, através da hasta pública oficial, também dos vultuosos bens imóveis eclesiásticos (conventos, mosteiros, terras) espalhados por todo o país.

Desde o século XVIII que os Burgueses progressistas defendiam a mudança social e política tentando aceder aos centros de decisão política e à posse da terra, entrando naturalmente em choque com as ordens sociais dominantes (Clero e Nobreza) que dominavam essas áreas. Uma vez chegados ao poder com a Revolução Liberal de 1820, era previsível o conflito entre os Liberais progressistas e aquelas ordens privilegiadas e conservadoras. No plano ideológico, o Clero acusava o toque das novas ideias do Liberalismo, e definia os Liberais como “inimigos do Trono e do Altar”, salientando o facto de serem contra a Monarquia Absoluta e a tradição da Igreja na sociedade portuguesa. Os Liberais, por seu lado, imbuídos do espírito iluminista de Montesquieu, Rousseau e Voltaire, combatiam os privilégios da Igreja, e principalmente do Clero Regular com a sua antiga estrutura fundiária.

No entanto, a nova situação que decorria da vitória liberal na guerra civil, em que claramente se pôs em causa a estrutura secular do Antigo Regime, como o demonstra claramente o texto de Garrett, deixava fortemente desiludida a grande massa de liberais de menos posses que, julgando-se vitoriosa com a capitulação do Clero, estava agora dependente da Alta Burguesia. Afinal, conclui o Autor, os genuínos liberais não compreenderam os frades, nem estes compreenderam aqueles. Conclui mesmo que, depois de conhecer tudo o que se passou com aquela mudança, a expulsão dos frades foi mesmo uma asneira como nunca houve outra. Agora já era tarde, mas Garrett deixa escrito que “antes queria a oposição dos frades que a dos barões”!

Entrava-se assim na era dos Barões, que marcaria praticamente toda a segunda metade do século XIX, num tempo em que se generalizava a atribuição dos títulos de Barão e Visconde a todos aqueles que se iam distinguindo pelo seu poder económico e social. Eram já tantos que Garrett diria mais tarde, “foge cão que te fazem Barão! Mas para onde, se me fazem Visconde? Ele que mais tarde viria a ser também o Visconde de Almeida Garrett…

No próximo post, deixo então o texto de Almeida Garrett, ligeiramente encurtado, para que os leitores o possam fruir, entendendo o seu contexto histórico.

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30 – A Escrita do Sudoeste

Enquadramento histórico e geográfico

Escrita do Sudoeste é o nome pelo qual é conhecido um conjunto de caracteres fonéticos gravados em pedras locais – estelas – com cerca de 2500 anos (período da Idade do Ferro peninsular, anterior à conquista romana), que desde há muito têm sido encontradas no sudoeste da Península Ibérica. Em particular, o espaço onde têm sido identificadas mais estelas gravadas é no território português, no interior serrano dos concelhos de Loulé e de Silves, e de Almodôvar e Ourique, confinantes entre si e por onde se estende a Serra do Caldeirão.

No concelho de Loulé, destacam-se os territórios das freguesias do Ameixial, Salir e Benafim. Na primeira destas freguesias foi encontrada uma dezena de estelas (num total de cerca de 75 identificadas em território português). Os sítios dos Vermelhos, Tavilhão, Azinhal dos Mouros, Portela e outros da parte ocidental da freguesia (e bem perto, a Corte Pinheiro, já no Alentejo), ladeando o curso inicial da ribeira do Vascão e o do Vascanito, deram a conhecer a maior parte dessas peças, e presume-se que ainda haja mais por descobrir. Muitas destas “pedras com letras” foram descobertas em situação de reutilização nas paredes das casas ou em demarcação de terrenos.

Fig. 1 – Estela do Viameiro – Salir – Loulé

     Esta localização numa zona de relativa interioridade, como a indicada nos concelhos referidos, também é interessante, considerando que os povos desta região se abriam ao Mediterrâneo e contactaram por diversos meios e motivos com as civilizações marítimas coevas baseadas nas suas margens, como os Fenícios, Gregos e Cartagineses. Neste canto da Península, antes dos Romanos (fins do séc. III a. C.), viveram diversos povos com as designações (algumas redundantes) de Cónios, Cinetes, Turdetanos, Tartessos e outros, alguns dos quais presumivelmente estiveram de alguma forma ligados a esta escrita. Uma das mais celebradas cidades desta região no período pré-romano era Conistorgis, que terá chegado à época romana, havendo referência de autores romanos, e cuja localização exata também ainda hoje permanece obscura. E, no entanto, é longe da costa, na serra, que se encontraram quase todas as estelas.

A escrita do Sudoeste está considerada como a mais antiga da Península Ibérica e a terceira mais antiga da Europa, depois do grego arcaico (Linear A e B da Civilização Cretense), e da escrita fenícia. Conhecem-se os sons que cada símbolo reproduz (portanto consegue ler-se), mas ainda hoje permanece indecifrável o seu significado, a exemplo, aliás do citado grego arcaico, apesar de ter havido muitas sugestões e tentativas de leitura. Faltará encontrar-se por aqui o equivalente à pedra de Roseta e ao sr. J-F. Champollion para os hieróglifos egípcios…

É uma escrita sinistrorsa (escreve-se da direita para a esquerda, modelo que é usado em outras escritas do Próximo Oriente, como o árabe e o hebraico). As estelas estavam colocadas na vertical sobre a terra, com cerca de 1/3 da sua altura enterrada, e a escrita está naturalmente na sua parte descoberta, desenvolvendo-se em arco, começando em baixo, seguindo o contorno exterior da estela, no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio.


Alguns arqueólogos amadores fizeram pesquisas e colecionaram peças que foram levadas para os Museus de Arqueologia em Lisboa e Faro, como José Rosa Madeira e Manuel Gomez Sosa, ambos ligados à freguesia do Ameixial, o primeiro por nascimento e o segundo por lá ter residido.

Grandes nomes da arqueologia nacional como os Drs. Estácio da Veiga, Leite de Vasconcelos e Caetano Beirão, e a louletana Drª Isilda Martins pesquisaram e deixaram obra escrita sobre este assunto.

Nos últimos anos, desde 2008, tem sido desenvolvido um amplo trabalho de pesquisa e divulgação no âmbito do chamado Projeto Estela, onde se têm destacado os arqueólogos Pedro Barros e Samuel Melro e que tem posto este tema na atualidade cultural da região.

                              

Fig. 2 – Estela dos Vermelhos – Ameixial – Loulé

            

Almodôvar tem o principal museu desta escrita, mas Loulé, no seu Museu Municipal (castelo) também mostra algumas estelas deste período.

A Escrita do Sudoeste é assim uma das jóias da coroa do nosso património histórico-cultural que até há poucos anos não tem tinha a devida atenção e divulgação. Não há muitas áreas da cultura (ou outras) que tenham a importância e a projeção deste tema para as freguesias e concelhos envolvidos, o que deveria ser motivador da autoestima das suas populações, pelo que tudo o que for feito para dar a conhecer este tema será positivo.

Fig. 3 – Estela da Corte Pinheiro – Santa Cruz – Almodôvar


                                                                                                                                       

        

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27 – Ruínas arqueológicas de Loulé Velho – Quarteira – Loulé

A propósito da atual proposta de criação da Reserva Natural da Foz do Almargem e do Trafal, trago à atenção de todos que esta área tem ainda um valor cultural significativo: desde o período Neolítico que se comprova a presença humana nesta zona litoral a nascente de Quarteira, conhecida popularmente como Loulé Velho, como indicam, entre outros, os arqueólogos abaixo citados, Leonor Rocha, João Pedro Bernardes e Isabel Luzia, já neste século, e dos quais retiramos estas informações.

Com efeito, as escavações conduzidas por Leonor Rocha, em 1999, identificaram diversos objetos de uso humano da época neolítica, especialmente materiais cerâmicos (vasos decorados e taças carenadas), e muito poucos materiais líticos 1.

É, no entanto, da época romana, que se conhece um conjunto de vestígios, de que há referências escritas desde o século XVIII (Frei Vicente Salgado – 1786), que na atualidade estão reduzidos a uma pequena porção daquilo que terão sido ao longo dos tempos, num espaço junto à linha de costa, entre as ribeiras de Almargem e de Carcavai, que outrora tinha uma outra geografia, e que permitiria a acostagem de embarcações vindas por mar. São estruturas e objetos que foram datados do período entre os séculos I a. C. e VII d. C., principalmente ligados ao processamento de produtos piscícolas, entre as quais várias cetárias, onde se produziria o famoso garum (pasta de peixe e marisco muito apreciada no mundo romano).

Complementarmente, outras informações que temos dos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX (Estácio da Veiga e Teixeira de Aragão), falam-nos de equipamentos habitacionais, provavelmente uma luxuosa villa, com as suas termas e compartimentos pavimentados a mosaico e, curiosamente, não se referem às cetárias. Há igualmente referências a estruturas que poderão ser relacionadas com as fundações de uma basílica paleocristã, algumas sepulturas, e restos de canalizações de chumbo.

Pensa-se que grande parte das estruturas da época romana já tenham desaparecido, por efeito da ação do mar sobre a costa, que nas últimas décadas tem sido extraordinária, desconhecendo-se a extensão exata do seu perímetro, mas é provável que, soterrado, ainda haja potencial arqueológico considerável 2. O conjunto de fotos apresentado no trabalho de Isabel Luzia 3, registadas no ano de 1978, mostram claramente o conjunto de estruturas e objetos que então ainda estavam visíveis e que a erosão marítima quase totalmente eliminou desde então.

Mais recentes, mas também já desaparecidos, eram duas construções de caráter defensivo – os chamados “forte velho” e o “forte novo” (da Guarda Fiscal), de que se avistam ainda deste último, na maré baixa, alguns blocos desagregados da sua estrutura.

________________________

     Cf. ROCHA, Leonor – “O sítio neolítico da praia do forte Novo – Quarteira- Loulé” – Ver. Al-Ulyã – nº 10 – 2004.

       2  Cf. BERNARDES, João Pedro – “Intervenção arqueológica de emergência no sítio romano de Loulé- Velho” – Revista Al-Uluà – nº 12 – 2008.

      3  Cf.  LUZIA, Isabel – “O sítio arqueológico de Loulé Velho” – Revista Al- Ulyã – nº 10 – 2004.

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26E – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé

5 – A evolução e desaparecimento desta coletividade

 Deixámos já atrás explícito que a atividade da Sociedade de que tratamos não afinou pelo diapasão da regularidade. Vários foram os períodos que não se fizeram sessões, nem se sabe se manteriam os membros entre si algum elo de ligação.

 Não existiram praticamente cisões internas, nunca, ao que consta se formaram min-grupos com diferenças marcantes entre si. Existiram, isso sim — e parece-nos que tal é normal, acontecendo em qualquer tipo de associações— algumas saídas singulares de membros do grupo. Alguns tiveram que se deslocar, abandonando naturalmente o grupo, outros, por qualquer motivo demitiram-se (doença, velhice), outros ainda (pelo menos um) foram expulsos por não pagarem as quotas, nem para tal darem uma desculpa.

 No entanto, e neste contexto, a mais importante separação surgiu nos finais do ano de 37. Separadamente, foram-se afastando Cláudio José Pinto, “atacando o Presidente e a Sociedade”, Carlos André Pinto, o padre Domingos de Sousa Viegas, o tesoureiro Francisco Martins Andrade e, por último, o mais importante – o padre José Rafael Pinto, que havia algum tempo não assinara os estatutos revistos e pedira a sua demissão “em consequência da sua idade e moléstia”.

 Estas saídas efetuaram-se entre 31 de agosto e 31 de dezembro de 1837, não tendo assim constituído uma saída em bloco. Mas é significativa! Três membros da família Pinto (entre os quais, o dinâmico Pe. José Rafael Pinto, o velho) que desde inicio participavam na Sociedade e até foram os seus principais fundadores.  Lembre-se que o Prior Pinto fora o primeiro Presidente da coletividade e Cláudio José Pinto, o primeiro Diretor. Além destes, e talvez por simpatia para com o seu colega, o Pe. Domingos de Sousa Viegas, também sócio antigo, e ainda o tesoureiro Francisco Martins Andrade, cujos antecedentes se desconhecem.

A que correspondia isto? Eis uma questão a que é difícil responder. As atas não se referem pormenorizadamente ao facto, antes o abordam sumariamente. Como vimos, desconhecem-se os estatutos e, muito menos se sabe do que constaram as suas alterações.

 Questões de ordem interna? Problemas levantados no seio do grupo? Ou questões de ordem externa, relacionadas com a revolução de setembro do ano transato e seu posterior regime político?

 Só nos aparece uma coisa como certa – que os problemas são levantados diretamente pelos estatutos revistos.

Nas sessões anteriores à demissão do Prior Pinto, é este fortemente censurado, tendo sido dito que “tem mostrado pouco interesse pela sociedade”.

 De qualquer modo estes membros aparecem-nos como minoria no contexto social do Gabinete. Entretanto a sociedade ainda ia, talvez, no seu caminho ascendente. Teria sido apenas um acidente de percurso…

 Até 1841-42 a Sociedade pode dizer-se em atividade normal, para daí em diante se mostrar cada vez menos ativa, como vimos, até 1848. Aliás, a data considerada final – 20 de fevereiro de 1848 – é marcada por una ata bastante lacónica, sem termos ou significado de maior, não aludindo explicita ou implicitamente a que seria a última. Também assim acontecia naquelas que se seguiam a longos períodos de passividade, em que não se expunham as causas nem se aludia ao facto de a sociedade ter estado inativa. A ser certo que a sociedade acabou mesmo em 48, temos de considerar aqui que ela “morreu” de velhice, sem quaisquer sobressaltos. Na sequência lógica das longas paragens intermédias. Naturalmente…

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26D – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé

4 — A vida cultural e mundana

 Além de uma relação importante com os eventos políticos de maior significado, que ao longo do seu período de atividade houve, teve ainda a dita sociedade tempo e disposição para se dedicar aos aspetos de índole cultural. Talvez até fosse essa, aliás, a razão principal da sua existência, o seu suporte estruturai, aparecendo-nos então as manifestações de ordem política como questões pontuais, acerca das quais a sociedade tomava uma posição pública.

 Para que a cultura e o conhecimento dos factos fosse uma das características dos membros da Sociedade, adquiria esta bastantes exemplares de livros e jornais que ao tempo existiam no país e que mais se coadunassem com a ideologia do Gabinete. Mas, convém frisar, não se compravam somente os “seus” jornais, adquiria-se todos os anos a assinatura de “um periódico da oposição’, mostrando talvez assim a sua abertura às ideias contrárias.

 Foram os seguintes os jornais que a Sociedade foi adquirindo, por ordem cronológica:

 a) a partir de 31 de maio de 1836:

 b) assinaturas oferecidas pelo Juiz de Tavira, Gonçalo Magalhães Colaço, em 3 de julho de 1836:

 – “Independente”;

 – “Diário do Governo”

 – “Nacional”

 – “Revista”

 – “Artilheiro”

 – “Periódico dos Pobres”

 – “Movimento”

 – “Minerva”

 – “Industrial…?”

 c) a partir de 30 de setembro de 1836:

  – “Porto Franco”

 d) a partir de 9 de abril de 1837:

  – “O Hespanhol”;

  – “O Examinador”

 Em 15 de agosto de 1837 são considerados mais importantes os seguintes jornais e completadas as suas coleções: “Diário do Governo”, “Nacional”, “Periódico dos Pobres”, “Arquivo Popular” e “Anómalo”,

 Os restantes não foram completados. Mas continuemos:

 e) a de 31 de dezembro de 1837:do 37

  – “Recreio de Família”,

Em 31 de janeiro de 1838 considera-se que “0 Procurador dos Povos”, da oposição “não estava em condições de ser assinado pela sociedade”.

 f) a partir do 15 de fevereiro de 1838:

 – “O Tempo”.

 Nesta data refere-se que o “Hespanhol” era assinado em Madrid e que os Correios eram frequentemente intercetados entre Madrid e Ayamente. Prossigamos:

g) a partir de 25 de junho de 1838:

– “A Hespanha”;

 h) a partir de 29 de dezembro de 1838:

– “Lusitano”;

– “Panorama”.

i) a partir de 31 de dezembro de do mesmo ano:

– “O Chocalheiro”

j) a partir de 31 de janeiro de 1839:

– “O Mensageiro”;

l) apartir de 28 de fevereiro de 1839:

– “Pobres do Porto”;

m) desde 11 de março de 1840:

– “Março Pitoresco”.

n) desde 3 de jeneiro de 1844:

– “Revolução de Setembro”.

o) desde 12 de dezembro de 1844:

– “O Patriótico” – da oposição.

Convém aqui frisar que os jornais eram escolhidos em janeiro e em julho para os semestres seguintes. Daí que a sociedade não assinava todos os jornais apresentados, ao mesmo tempo. Esta lista refere-se, repetimos, aos jornais assinados ao longo da atividade da Sociedade.

A única referência qualitativa que ao longo das sessões se faz dos periódicos, á acerca do ‘Independente”, considerado “dos mais bem redigidos do país”. Sobre este mesmo jornal, José de Arriaga na sua obra já citada diz que é “moderado, sincero e bastantes vezes ingénuo”.

No entanto, o mais importante de todos deverá ter sido o “Panorama”, que aparece em 1837 e de que Alexandro Herculano foi diretor.

Sobre os livros ou outras publicações existentes, as referências são menores, não porque não existam (compreende-se através da leitura das diversas atas que elas existiam),  mas porque não são mencionados os seus  títulos. Vejamos, ainda assim, os que explicitamente se sabe que existiam:

– “Anaes da Sociedade Promotora da Indústria Nacional”

– “Instruções sobre agricultura, artes e indústrias “

– “Constituição de 1838”

– “História Portuguesa” da Castilho – “obra interessante”

– “Mapa do Algarve” de J. B. da Silva Lopes

– “Folheto com a descrição da praça de Gibraltar”

 Além destes (poucos) aparecem ainda as seguintes alusões:

 “Ofertas de livros à Sociedade” (em 1 de nov. 1836)

 “O prior Pinto oferece alguns livros que tinha na Sociedade” .

 Sabe-se ainda que existia uma biblioteca, para a qual houve um pedido para que à Sociedade ficassem a pertencer os arquivos dos conventos da Graça e Capuchos, à Rainha, o que não se sabe se foi deferido.

Quanto a outras manifestações mundano- culturais devem salientar-se as comemorações que, todos os anos, se faziam no dia 29 de dezembro – dia da instalação da Sociedade. O Presidente em exercício discursava em sessão pública e depois seguia-se o baile respetivo.

 Nas festas era ainda frequente jogar-se o “balancé” e tomarem-se refrescos.

 Já com alguns anos de atividade, resolveu a sociedade rejeitar uma proposta de compra de um bilhar e de jogos de tabuleiro, tendo, no entanto, aderido ao “jogo da bola” (curioso) em que participavam oficiais do destacamento aquartelado na vila.

Em aspeto de caráter caritativo citemos ainda um jantar oferecido aos presos no 1º aniversário, bem como uma “esmola em dinheiro às viúvas necessitadas das vítimas da usurpação”.

Enfim, também neste aspeto a sociedade acompanhava os progressos que a imprensa fazia. Talvez os melhores periódicos da época estivessem dentro da lista apresentada.

 É de assinalar ainda a influência que a Espanha exercia e que se manifesta na assinatura de pelo menos um jornal espanhol. É que a Andaluzia está muito próxima do Algarve, são zonas geográficas afins e complementares.

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26C – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé

3 – As relações da Sociedade com a evolução política do País

 Já foi aflorada aqui a particularidade de este gabinete de leitura ter alguma relação com a evolução política que se ia processando por todo o país. Também já se concluiu (pela definição do grupo e pelos seus atos) que esta sociedade se podia catalogar politicamente de liberal. Passemos a interessar-nos por alguns factos quo podem demonstrar esta tese.

 A primeira manifestação pública de natureza política que a coletividade organizou foi pouco tempo depois da sua criação, aquando do aniversário natalício de D. Maria II, “Rainha Constitucional“, que se teria passado em 4 de abril de 1836. Constou a festividade (como parece ser hábito na época, porque se repete várias vezes) de um baile e bastante iluminação. Para o baile convidaram-se as “pessoas decentes da vila”. A festa teria sido organizada por uma comissão e tendo sido levada a cabo, entre outras pessoas, por “algumas senhoras que colaboraram“, e que na sessão posterior da sociedade foram alvo do um agradecimento da coletividade. Interessante verificar que, não havendo registo de senhoras entre os membros da sociedade, a elas recorreram para prestarem a sua colaboração na festividade. Com certeza que essas senhoras eram as esposas de alguns membros do Gabinete, talvez mesmo dos que formavam a comissão organizadora. A sua participação deve ter-se limitado a levar a efeito o serviço de bufete (doces, bolos e algumas bebidas, como o chá) durante o baile.

 Um segundo acontecimento, de longe o mais importante, quer pela sua ressonância política, quer pela forma como foi celebrado –  surge em 13 de setembro de 1836. Que se passa então? Citemos as palavras do secretario da sociedade na sessão daquela data:  “Chegou de Lisboa a fausta notícia de que na capital se tinha proclamado a Constituição de 1820 (sic), a que Sua Majestade a Rainha tinha anuído” (facto que tinha acontecido em 10 de setembro de 18 – N. A.).

 A Sociedade devia dar demonstrações de regozijo e que se deveriam convidar as autoridades e todos juntos se dirigissem aos sítios mais públicos desta vila e aí vitoriassem a Constituição de 20. (…)

 Não foi possível aos membros da Sociedade sufocar por mais tempo os transportes de alegria em que superabundavam seus corações.  Prorromperam vivas à Constituição, à Rainha e a S. A. Seu digno esposo e, tendo-se acalmado os ânimos dos entusiasmados membros da sociedade, entrou a sessão na devida ordem. (…) Nomeou-se uma comissão para ir convidar as autoridades. A aclamação seria feita no próprio dia à noite. Algum tempo depois, chegavam o Presidente da Câmara, o Juiz de Direito, o Administrador do Concelho e o Comandante da força militar da vila.

 Foram para a praça principal, precedidos da Sociedade Filarmónica.

Foram dadas vivas aos já citados e a todos os amantes da liberdade com particularidade aos Malaguenhos proclamadores da Constituição do ano 12, sendo estes vivas proclamados pelo imenso gentio que naquele sítio se tinha agrupado, e pela tropa com grande entusiasmo. A Sociedade Filarmónica tocou o hino de 1820 e mais hinos patrióticos.”

Assim foi descrita por José Francisco Cavaco a preparação e a realização das comemorações, no próprio dia em que em Loulé se soube tal notícia.

 Cabe aqui um pequeno pormenor que é o de, na maior parte dos casos que em que se alude à Constituição proclamada em 1822, se denominar esta de “Constituição de 20′. Este próprio facto aconteceu em Lisboa, quando se pediu a sua reposição à Rainha. Representa talvez uma aproximação aos ideais “vintistas”.

 Mas analisemos as comemorações, para delas podermos extrair algo de proveitoso para o nosso estudo.

 Repare-se, desde que já, que a notícia levou cerca de 3 dias para chegar a Loulé, o que prova a distância real e efetiva que existia entre o Algarve e Lisboa.

 Toda a descrição se refere, do princípio ao fim, à alegria e entusiasmo com que os membros da sociedade acolheram a “fausta noticia“.

 Da sociedade partiu a iniciativa das comemorações, para o que posteriormente foram convidadas as autoridades louletanas, que aqui demonstram, além de uma adesão aos mesmos ideais vintistas, uma respeitosa consideração pela sociedade como grupo importante na vila.

 Acompanhados pela Sociedade Filarmónica dirigiram-se todos para a praça principal (hoje talvez o Largo Gago Coutinho) e aí se tocaram “hinos patrióticos” e lançaram vivas às supremas autoridades do Reino. Sabe-se ainda que no dia seguinte continuaram os festejos “em honra dos felizes acontecimentos ocorridos nesta vila”. Organizou-se um baile “e competente chá, para o que se convidaram as pessoas decentes da vila”. O baile fez-se na sala de Audiências do Tribunal.

 Na sessão seguinte, em 16.set.1836, fez-se o “Juramento pelos membros da sociedade, de fidelidade à Constituição proclamada em 23.set.1822”.

Fez-se ainda uma felicitação à Rainha e um pedido de armas para a Guarda Nacional “para sossego e segurança dos habitantes da vila”.

 Ora bem, continuemos a nossa análise.

 Parece-nos que a grande conclusão a tirar é a de que a Sociedade participava de um ideal altamente liberal, no sentido mais revolucionário de 1820. A Constituição, elaborada e promulgada em 22, foi, como já aqui foi dito, a bandeira do um certo liberalismo de esquerda, quase no sentido “democrático”. Com efeito, era imensamente mais esquerdista do que a Carta Constitucional dada por D. Pedro IV em 1826 e que. dez anos mais tarde, ainda se encontrava em vigor.

 Alguém que, passados que tinham sido catorze anos, ainda defendia a primeira Constituição que houve Portugal, teria forçosamente que alinhar na ideologia que lhe é subjacente, a ideologia por que tinham lutado (sem grandes resultados práticos, aliás) homens como Manuel Fernandes Tomás, “o pai da liberdade portuguesa”. De outra forma não se pode compreender um tão grande empenho, uma tão grande alegria depois de conseguida a reposição da Constituição de 22. Aliás esse facto, além do aspeto ideológico, viria a alterar e a melhorar sensivelmente a maneira de viver dos habitantes de uma vila a cerca de 300 Km de Lisboa? Com certeza que materialmente os ganhos foram muito poucos…

Talvez em Loulé se desconhecessem, de início, os meandros e tentativas de ganhar tempo de que a Rainha se fez uso. Talvez por isso ela fosse bastante aclamada nas comemorações!

Outro aspeto, e que não poderá passar despercebido é o das vivas dadas aos Malaguenhos – “amantes da liberdade” – que tinham proclamado a Constituição de Cádis, promulgada na relativamente longínqua data de 1812 e que ideologicamente era do teor da nossa de 22, ou vice-versa…

 Aqui se denota que se fazia uso no Gabinete de um dos itens apresentados em 1820, no projeto de associação patriótica de Lisboa: correspondência com países estrangeiros, para se saber o que se passa no exterior.

 Por tudo isto, efetivamente, a Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé, não deslustrava em nada, pelo contrário, as suas congéneres mais célebres das grandes cidades portuguesas já citadas.

Um último pormenor sobre estas festividades – o pedido de armas para a Guarda Nacional “para sossego e segurança dos habitantes da vila”. Aqui se entrevê que se sabia de antemão que não seria mais respostas que se repunha a Constituição de 22. Se entrevê também uma alusão a forças conservadoras que praticavam atos de banditismo, como é o caso concreto das guerrilhas do já citado “Remexido”, José Joaquim de Sousa Reis.

 Os restantes acontecimentos de natureza política são, como já ficou dito atrás. de menor importância. Citemo-los:

 Na sessão de 22 de Setembro de 37 regista-se a “alegria pelo nascimento do príncipe herdeiro”, tendo-se feito “uma manifestação pública de regozijo“, no dia do batismo.

 Uma última manifestação, que de certo modo tem um caráter interno, é o de “uma felicitação ao sócio Fontoura (General), pelo grande acontecimento da captura do infame guerrilha Remexido”, e a subsequente deputação que se faz a Faro ao mesmo general (que, no entanto, nesta última data aparece referenciado como Coronel Fontoura – 15 de agosto de 1836).

 Parece-nos que tudo o que ficou dito prova cabalmente as conclusões que também já ficaram expressas, entre as quais avulta a do patriotismo e defesa dos ideais vintistas pelos membros da sociedade no seu conjunto.

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26B – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé

2 — Quem formava o Gabinete

 No capítulo anterior já ficou dito que a sociedade era formada pelas pessoas mais ilustradas de Loulé e zonas vizinhas, com uma posição social que lhes dava as condições necessárias para acompanhar o “processus” político e cultural do País.

Sabe-se que tinha uma composição, logo no seu início, de dezasseis sócios, os quais aumentaram para vinte e seis, até ao fim do ano de 1836, tendo, entretanto, e fora destes números, desistido um.

 0 seu primeiro presidente foi o citado Pe. José Rafael Pinto, que exerceu a sua profissão em Loulé entre 1834 e 1864, homem muito conhecido localmente, e cuja atividade ímpar bastante prestigiou a vila, através da sua dinâmica de pessoa ligada a diversas atividades culturais, entre as quais as letras e a música(em que parece ter tido papel de relevo ao fundar uma filarmónica, assunto que trataremos na 2ª parte deste trabalho).

Além de José Rafael Pinto, alguns outros membros da sua família vieram a pertencer à sociedade, ou exerceram cargos bastante importantes posteriormente, como Cláudio José Pinto, primeiro Diretor da Sociedade; José Cláudio Rafael Pinto, sobrinho do primeiro e também clérigo; e ainda Aurélio Cláudio Rafael Pinto, Juiz de Paz em Loulé em 1867.

 Outros elementos de renome em Loulé vieram também a fazer parte da sociedade. Assim temos os drs. Manuel António Vieira e Francisco de Freitas Oliveira; o tabelião em 1867 (data que existe pela primeira vez na Conservatória do Registo Predial local) José Francisco de Freitas; José Caetano Benevides, homem bastante rico da vila.

Além de todos estes devem destacar-se seguidamente os nomes dos bastantes clérigos que enfileiram entre os sócios da coletividade. Depois dos dois familiares já referidos, dela fizeram parte Diogo de Oliveira e Horta, Domingos de Sousa Viegas, José Agostinho Teixeira, pároco de Salir, José Inácio Palma, Joaquim António Oliveira e Francisco de Paula Ataíde, pároco de Porches-Lagoa.

Conviria, em face desta situação, responder à questão “por que se interessam desta maneira os eclesiásticos pela sociedade?”. Com certeza o Clero formava conjuntamente com alguns Burgueses o grosso das camadas mais cultas da sociedade rural. Por este aspeto parece lógico que uma sociedade de caráter cultural tivesse em suas fileiras bastantes padres. Mas, e o aspeto ideológico? Sabendo, como se sabe, que dos dignatários da Igreja partiram as principais forças contrárias à revolução de 20 (caso do Patriarca de Lisboa e do bispo de Beja, entre outros), como explicar o facto, partindo ainda dos dados iniciais de que estas sociedades eram liberais? Sabe-se também que o prior Pinto, por vários documentos e tradição, era um grande liberal. Aliás o facto de clérigos serem de ideologia liberal não era inédito, como acontecera nas Cortes Constituintes de 1821-22 em que José de Arriaga enaltece a ação conduzida por alguns.

Talvez a resposta se encontre por outro meio. É que a Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé era, pelos motivos já expostos, um pouco menos ativa politicamente do que as suas congéneres mais famosas, a de Lisboa e do Porto. Mas não exageremos este pormenor, porque em várias ocasiões, que teremos oportunidade de mostrar, a sociedade sempre se mostrou do lado dos ideais vintistas e a favor da Constituição de 1822. Concluiremos assim que os referidos padres estavam mesmo empenhados nos ideais liberais.

Quanto a todos os outros sócios, deveriam ser, portanto pessoas da classe média, digamos média e pequena burguesia rural ou comercial, algo instruída e de ideologia predominantemente liberal, em que alguns são apresentados como de “negócios”. Efetivamente ainda hoje o comércio é o principal sustentáculo económico da vila.

Um outro aspeto que nos Ieva a concluir que a posição da maioria (senão da totalidade) era da pequena e média burguesia, ou por essa volta, é o de que, sempre que havia festas e bailes de qualquer natureza, organizados pela sociedade, se convidavam sempre as “pessoas decentes da vila“. Que significa, portanto, esta expressão? Não será sinónimo de pessoas de bem (bens), medianamente estabelecidas, de forma a dar mais prestígio à sociedade? Aliás isto vem dentro do contexto da ideologia liberal, com as célebres divisões entre pessoas ativas e passivas, em quo nem todos têm o direito ao voto porque não estão devidamente capacitadas para tal.

 Parte do momento em que o chamado “Terceiro estado” se desmembrou para dar lugar de primazia à Burguesia, que deste modo se apodera sozinha do aparelho de Estado. Tal é o modelo prático do Liberalismo, e tal deveria ser a atitude dos liberais das zonas rurais, que deveriam manter para com as forças conservadoras uma posição de pessoas de bem que, no entanto, estariam interessadas em implantar um regime que, não obstante, e pela sua abertura, era bastante diferente do Absolutismo do Antigo Regime.

 A sociedade tinha ainda, além dos já referidos, e que se caracterizavam por sócios ativos, alguns outros bastante reputados, como era o caso do Dr. João Viana Resende, médico em Lisboa e do Dr. José Maria Guides, cirurgião-mor da província de Mato Grosso – Brasil, e ainda do “insigne poeta” Francisco António Martins Basto, bem como do bacharel em Leis (em 1853 juiz de Direito em Loulé João Ferreira Pinto, os quais eram sócios correspondentes.

Em lugar de destaque, e por último, contam-se entre os sócios desta coletividade, a partir de 4 de fevereiro do 1838, o General Fontoura, “suprema autoridade civil e militar nos três distritos de Faro, Beja e Évora” (e que viria a participar na captura do famoso guerrilheiro miguelista- legitimista Remexido, como adiante veremos), e ainda o capitão de Caçadores 4 (com um destacamento aquartelado na dita vila) António Joaquim Pimentel Jorge.

 Recebeu ainda o Gabinete visitas frequentes de importantes personalidades em serviço no Algarve, como: Joaquim Pedro Judeci Samora – “deputado ao Soberano Congresso Nacional”, em 15.fev.38 e ainda Gonçalo Magalhães Colaço, juiz de direito em Tavira, em 3.Jul.36; as autoridades militares: José Pedro Celestino Soares – coronel comandante da 8ª Divisão e encarregado do governo militar do Algarve, acompanhado de um tenente-coronel comandante de caçadores 15 e dum capitão do mesmo corpo, respetivamente Filipe Correia de Mesquita e  António Luís Meireles, em 18.Jul.37.

 Em 30 de setembro de 1836 fazem-se agradecimentos ao provedor interino do concelho “que fez bastantes benefícios à sociedade”.

 Enfim, da boa composição social e prestígio da coletividade, parecem não restar dúvidas. Deveriam ser mesmo as pessoas mais capazes que então em Loulé havia.

 Da importância e peso político do Gabinete dava-se frequentemente conta a Câmara Municipal, que com ele mantinha boas relações e em conjunto organizavam festividades para as datas históricas que sempre se iam comemorando.

 A reputação que alguns dos seus sócios correspondentes (e não só) tinham, dava-lhe ainda um caráter mais elevado, na medida em que ilustres personalidades se dignavam fazer parte dele ou manter correspondência assídua.

 Muitas instituições públicas também mantinham contactos com o gabinete. É o caso, por exemplo, da Sociedade Promotora da Indústria Nacional.

 Sobre os restantes componentes da Sociedade, veja-se o APÊNDICE final com a lista dos que fizeram parte dela, ao longo dos anos em que esteve em atividade.

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26A – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé

I – SUAS CARACTERÍSTICAS

1 — A sociedade no contexto das sociedades do género que a partir de 1820 se criaram por todo o País

 Quando em 9 de dezembro de 1835, o Prior José Rafael Pinto, o velho, propôs a uma assembleia de homens ilustres da prestigiosa vila de Loulé, a criação de um gabinete de leitura na mesma vila, estavam lançadas as bases de uma coletividade que bastante contribuiria para o nome e fama daquela localidade.

Não foi das primeiras sociedades de carácter cultural que se criaram no País. 1835 já era uma idade que distava quinze anos de 1820 (ano de Revolução Liberal). A partir desta data (1820), com efeito, por todo o País e com especial destaque, é evidente, para Lisboa e Porto e até Coimbra (centro tradicional de contestação e estudantil) se formaram umas coletividades que, sendo de cariz político marcadamente liberal, além de uma atividade cultural, se interessavam abertamente pela implantação do regime constitucional em Portugal.

Logo em 26 de setembro de 1820 foi apresentado à “Assembleia Portuguesa” um projeto de associação patriótica nos moldes atrás descritos e que se pode verificar no que seguidamente citamos:

 “… Entre essas instituições ocupa um distinto lugar a de um gabinete de leitura, aonde se achem reunidos todos os escritos que próprios sejam para ilustrar e guiar a nação na inteligência e esforços aplicáveis ao prosseguimento da árdua mas heroica empresa de estabelecer e firmar a liberdade pela mais perfeita constituição…”1

Requeria-se ainda que, para o cabal desempenho das suas funções, este gabinete de leitura carecia de, resumidamente, estes itens:

1º – Conhecimento particular dos escritos que poderiam interessar à sociedade, dentro do âmbito para que fora criada:

2º – Correspondência com países estrangeiros, para se saber o que se passa no exterior;

3º – Fundos pecuniários suficientes para a aquisição de livros, jornais e outros materiais necessários;

 4º – Locai cómodo onde se instale o gabinete, e onde em tranquilidade possa prosseguir os seus fins;

 5º — Fundos pecuniários suficientes para a sua fundação e conservação.

 Este projeto viria a constituir a célebre “Sociedade Literária Patriótica de Lisboa”, fundada no dia 1 de janeiro de 1822, e onde teve um papel bastante ativo Almeida Garrett.

Efetivamente aqueles eram os desígnios e de certo modo as finalidades implícitas dos gabinetes de leitura que se iriam espalhar por todo o país, e que em quase todas as capitais de distrito, pelo menos, existiriam.

Se atentarmos na transcrição que acima fizemos, podemos verificar que uma das grandes preocupações era a de “prosseguir a árdua, mas heroica empresa de estabelecer e firmar a liberdade”. Ora em 1820, apresentar propostas deste género só poderia ser de liberais esclarecidos, que anteviam desde logo que essa finalidade não poderia ser atingida sem luta contra as classes mais interessadas na situação que anteriormente se vivera em Portugal.

Era ainda necessário “ilustrar e guiar a nação na inteligência” através de escritos que o pudessem fazer. O povo português estaria num estádio cultural bastante atrasado e dominado pelas forças mais conservadoras e, se se que queria trazê-lo ao seio das forças que agora lutavam pela liberdade, era necessário ilustrá-lo, demonstrar-lhe eficientemente que o caminho a seguir teria que ser outro, para que efetivamente todos (ou a maior parte) se sentissem irmanados no ideal que vinha da França de 1789.

 Talvez melhor que tudo e todos, esta missão de instruir deveria estar a cargo de sociedades de carácter cultural e político ao mesmo tempo, visto que eram estas coletividades quo estavam mais entranhadas nas camadas populares do interior nacional. A elas caberia dinamizar, não só em Lisboa, Porto e Coimbra, mas também nas cidades e vilas mais distantes e, por conseguinte, mais ignorantes do fenómeno politico o social que era ou poderia vir a ser uma revolução de caraterísticas liberais.

 Não se restringem, contudo, à missão de educar ou guiar espíritos mais ou menos ignorantes. Estas sociedades, com efeito, passaram a tomar um papel bastante mais ativo quando as ideias liberais passaram a ser atacadas, como em 1823, nas lutas que os absolutistas moveram ao regime saído de 1820 e cuja principal bandeira era a Constituição de 1822, a mais vanguardista das que no século XIX se fizeram em Portugal. Fizeram alistar muitos voluntários que se incorporavam de imediato nas fileiras liberais. Grande parte dos soldados tinha sofrido influência destas sociedades e alguns prémios lhes cabem, como no caso da Ponte de Amarante.

Naquele caso, que insurrecionou a maior parte de Trás-os-Montes, teve papel relevante a “Sociedade Literária Patriótica Portuense“, na qual se destacavam, entre outros, os estudantes de Coimbra e depois homens de vulto do Liberalismo em Portugal, os irmãos Manuel e José Passos, o primeiro dos quais chefe de governo durante o Setembrismo, com o nome de Passos Manuel.

 As grandes datas revolucionárias eram festejadas em todo o País e a consciência popular despertada através da ação destas sociedades. Foram, pode-se dizer, uma das forças impulsionadoras da opinião pública.

 Quando constava algum feito heroico praticado por qualquer cidadão em defesa da liberdade, as sociedades patrióticas corriam logo a saudá-lo e a cobri-lo de louvores.

Mas voltemos ao caso particular do Gabinete de Leitura de Loulé. É evidente que não foi fundado no âmago do puro revolucionarismo de 1820 e anos subsequentes. Até 1835, embora não mediassem muitos anos, muita coisa tinha acontecido. Foi até um dos períodos mais conturbados da nossa história pátria. E nem Loulé, embora sendo uma destacada povoação do Algarve, estaria em condições infraestruturais para poder ter uma sociedade em atividade ao nível das de Lisboa ou Porto. Limitava-se, evidentemente, ao que de bom existia no Algarve, região distante de Lisboa, à qual a má qualidade das vias de comunicação emprestava uma ideia de maior distância do que a que realmente existia.

 A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé, em que tomavam assento, como já dissemos, os homens mais ilustrados da vila, tinha como finalidades explícitas “espalhar as luze” e a “instrução”. Efetivamente, embora de uma forma mais atenuada, encontram-se aqui as ideias-força que transcrevemos da sociedade lisbonense. “Espalhar as luzes” era levar os ideais iluministas (filosóficos e políticos) a camadas que dificilmente os poderiam atingir. “Instruir” logicamente queria levar o mínimo de conhecimentos, de aprendizagem dos factos mais correntes, aos mais desfavorecidos neste campo.

 Esta ideia de desenvolvimento cultural da terra estava inserida, com efeito, no próprio timbre da sociedade, da autoria do já referido Padre José Rafael Pinto:

 “Um círculo dentro do qual em duas figuras retilíneas se veja em uma as Armas da vila, e da outra um livro com uma pena e que no lugar que se julgar mais apropriado se leia 29 de dezembro de 1835 – e bem assim – Gabinete de Leitura de Loulé.”

 Esclareça-se que a data apresentada — 29 de dezembro de 1835 – é a data da instalação da sociedade, cuja primeira residência se desconhece. Sabe-se, no entanto, que teria aí residido até 31 de dezembro de 1836 – um ano depois, data que passou para a casa da Misericórdia, onde fora a antiga Câmara.

 Aquele timbre foi apresentado na sessão de 2 de junho de 1837 e mandado fazer em 30 do mesmo mês em Lisboa, presumindo-se que no Algarve não existiriam casas da especialidade.

Todos os anos, especialmente naqueles estava em efetiva atividade (e que nem sempre aconteceu até 1848) se comemorava solenemente com discursos e sessões públicas o dia da sua instalação.

Deixou-se entender há pouco que o gabinete teve períodos de relativa sonolência, e outros de franca atividade.

Entre os de intensa atividade citam-se os anos seguintes à sua formação, isto é, de 1836 até ao verão de 1840; o princípio dos anos 1841 e 1842. Em contrapartida os segundos semestres destes anos e, bem assim, como os anos de 1843, 45, 46 e 47 não são registados no livro de Atas da Sociedade, que serve de base ao presente trabalho. No entanto, aparecem atas separadas por várias folhas em branco. Seria o devido lugar para as atas das sessões havidas e que por qualquer motivo não foram redigidas? De qualquer modo, não nos parece muito verosímil tal asserção, uma vez que no início de cada sessão se procedia à leitura e aprovação da ata da sessão precedente. Talvez a razão estivesse na clara demarcação dos vários anos, dando a ideia real de que houvera um largo período de tempo em que a sociedade não reunira ou estivera em menor atividade.

 Cabe aqui dizer novamente que se desconhecem os estatutos precisos deste gabinete que, no entanto, os elaborou e aprovou logo na primeira sessão posterior à sua instalação – na sessão de 13 de janeiro de 1836. Sabe-se explicitamente que a assembleia deveria reunir todos os meses, ao fim da tarde do último dia de cada mês, o qual, se fosse domingo ou feriado, deveria fazer antecipar a reunião para o dia anterior.

Uma possível descoberta dos citados estatutos muito viria aclarar toda a forma de processamento da dita sociedade, limitando-nos assim nós a reunir aquilo que separadamente se recolhe nas atas das diversas sessões que formam ao todo, entre 1835 e 1848, cento e treze, entre ordinárias e extraordinárias.

Quanto ao ano da sua extinção como sociedade, também não se sabe ao certo. Temos apresentado o ano de 1848 como sendo o último, baseando-nos no facto, já devidamente ressalvado, de a última sessão, cuja ata se encontra no respetivo livro, ser a de 20 de fevereiro de 1848.

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