14. Moinhos do concelho de Loulé (em 1988)

Depois de apresentar uma série de textos sobre a história medieval do Algarve, e eventualmente para desenfadar alguns leitores, vou fazer uma abordagem de alguns outros temas locais ou regionais, antes de voltar àquele, satisfazendo assim outros gostos e expectativas.

Moinhos do Concelho de Loulé (em 1988)

Nota prévia

Este texto foi apresentado no 5º Congresso do Algarve, organizado pelo Racal Clube de Silves em 20-23 janeiro de 1988, figurando nas respetivas Comunicações, em versão um pouco mais reduzida.  Decorreu de um levantamento feito pelo Autor e o seu saudoso colega João Santos, e foi patrocinado pela Comissão Nacional do Ano Europeu do Ambiente (1987) e subsidiado por esta entidade, pela Região de Turismo do Algarve e pela Câmara Municipal de Loulé. Tem, portanto, mais de 30 anos de escrito e publicado, pelo que deve ser dado o necessário desconto se compararmos o que aqui ficou dito como realidade da época, com a realidade atual (2021). Este tempo decorrido levou à total ruína a generalidade dos antigos moinhos e, mesmo aqueles que estavam em condições de laborar em 1988 estão hoje quase todos desativados e abandonados. Ainda assim, acho que tem interesse republicá-lo para memória futura, só com a atualização da ortografia para o novo modelo.

Introdução

 As instalações tradicionais de moagem, constituídas essencialmente por engenhos movidos pela água ou pela força dos ventos, são uma riqueza patrimonial de extrema importância. Embora atualmente em fase de declínio e de degradação material, há menos de 30/40 anos a sua laboração era imprescindível para a ação das populações ligadas agricultura do interior do concelho.

 As modificações socioeconómicas ocorridas nas últimas décadas, provocaram praticamente o seu fim, e de uma época de prosperidade e movimento, pouco mais resta do que uma saudosa amostra, apenas testemunhada por meia dúzia de instalações que ainda laboram, como que a dizer aos mais novos como se farinava o cereal de uma forma artesanal.

É essa ambiência de trabalho que marcou uma época que a presente comunicação pretende mostrar, através de uma análise que decorre de uma investigação mais ampla que no momento em que é redigida ainda está em curso.

1. Caracterização e localização dos Moinhos no concelho de Loulé

São conhecidas de todos os algarvios as grandes dimensões do concelho de Loulé. Na sua complexidade, abrange as três regiões que no sentido transversal dividem o Algarve – a Serra, o Barrocal e o Litoral — numa conjugação assaz curiosa.

 Os seus 765 Km2 divididos por nove grandes freguesias, são muito variados na qualidade dos seus solos e, desde sempre, a agricultura da região marcou uma forte presença, adaptada nos produtos e nas técnicas às diferentes condições geológicas e orográficas. Na sua zona norte, englobando a Serra e o Barrocal, as populações praticam tradicionalmente uma agricultura de subsistência, baseada na cultura de cereais e leguminosas, fruticultura de frutos secos e criação de gado. No litoral prevalece a horto-fruticultura de regadio.

Desta atividade intensa, mas de ação localizada em pequenos núcleos de área reduzida, neles perfeitamente inseridos, sobressaem os objetos do nosso estudo presente – os moinhos.

Durante muitos anos os portugueses conviveram com esses representantes da técnica tradicional, pré-industrial, utilizando-os em perfeita harmonia com os elementos da Natureza e dela retirando a energia necessária sem gastos supérfluos nem perspetivas negras de escassez de recursos. Hoje eles próprios olham para as suas ruínas e, eventualmente, as gerações mais novas nem saberão como sequer funcionavam…

 As instalações moageiras tradicionais que encontramos (em ruínas, na maior parte dos casos!) no concelho são dos dois tipos habituais – de água e de vento, ainda que com características varias dentro de cada género. Assim, os moinhos de água, em termos históricos os mais antigos, eram utilizados desde a antiguidade e podem-se neles distinguir dois tipos: o de roda horizontal, ou de rodízio, ou moinho grego — caracterizado pela impulsão da água num rodízio que gira na horizontal e que, através de um eixo vertical, transmite a rotação solidariamente com a mó andadeira; e o de roda vertical, ou azenha, ou moinho romano – caracterizado pelo movimento de uma roda exterior que a torrente de água faz girar na vertical, transmitindo-se esse movimento a outra roda interior que, por sua vez, e por um sistema de engrenagem dentada, o transmite na horizontal à mó andadeira. Este último tipo foi mais difundido no Ocidente pelos Árabes e traduz um melhor aproveitamento da força da água, já que igual quantidade de água neste sistema produz mais movimento explicado pela desmultiplicação da passagem do movimento vertical a horizontal. (v. Figura 1 – sobre Moinhos de água).

    Fig. 1 – Esquema de mecanismo de funcionamento de uma Azenha (à esq.) e de um Moinho de Rodízio (à dir.) – Esboços de Jaime Travassos

Quanto aos moinhos de vento, eles são do tipo mais comum no sul de Portugal, isto é, constituídos por uma torre circular em alvenaria (em taipa, em pedra e barro ou argamassa) e em que a cobertura e o sistema propulsor são girat6rios, em função do vento da ocasião, quer através de sarilhos interiores, quer por ‘cabresto’ (cordas que exteriormente movimentam o mastro e as velas). Neste último caso, a zona envolvente do moinho era geralmente plana e, num perímetro circular a cerca de 10 m do moinho existem marcos de pedra que auxiliavam o moleiro na manobra de girar o velame (v. Fig. 2).

Fig. 2 – Corte esquemático de moinho de vento (in Oliveira, E.V., Galhano e Pereira, obra citada)

 Os diversos tipos analisados encontram-se em todas as zonas do concelho, indiferenciadamente. Mas é no Barrocal e na Serra que encontramos mais instalações e é um facto que os moinhos de rodízio suplantam numericamente os de roda vertical (azenhas) nos cursos de água louletanos.

 Podemos contar cerca de 130 moinhos dos tipos descritos, sendo 80 de vento e 50 de água, a partir das cartas do Instituto Geográfico e Cadastral e dos Serviços Cartográficos do Exército e dos nossos trabalhos de campo em que se têm detetado algumas imprecisões daquelas, nomeadamente no que concerne aos moinhos de água.

 As zonas do concelho mais densamente apetrechadas destas instalações são as seguintes: Moinhos de vento — uma extensa sequência de cerros calcários que se estende de Oeste para Este entre Vale da Vaca (Boliqueime) e Malhão (S. Clemente) e que passa a menos de uma légua a Norte da sede do concelho; Moinhos de água – os cursos das ribeiras Mercês – Algibre, dos Moinhos – Benémola, e ribeira do Vascão, embora grande parte dos situados nesta última não pertençam pela localização ao concelho de Loulé e ao Algarve .

2. Importância dos Moinhos no contexto socioeconómico do concelho de Loulé na primeira metade do século XX.

Já deixámos referenciado o carácter de subsistência da economia que caracteriza a quase totalidade do interior do concelho, mais saliente no Barrocal e na Serra, onde precisamente há mais moinhos.

Na primeira metade do século XX, as populações estavam mais arreigadas aos valores tradicionais da agricultura e de uma maneira geral as gerações sucediam-se ocupando o mesmo espaço e habitando nele simultaneamente ou em continuidade.

 As zonas rurais eram relativamente mais populosas que o são nos nossos dias e as aldeias, sítios e casais eram marcados no seu dia-a-dia por um ritmo de vida campesina algo diferente do atual.

 Cada família provia ao seu próprio sustento, cultivando cereais — trigo, cevada, aveia e centeio e milho — que seriam moídos e eram a base alimentar de pessoas e animais de trabalho.

 Esta cerealicultura tradicional da região seria notoriamente aumentada a partir de 1929, quando o plano nacional denominado Campanha do Trigo incentivou por todo o país a sua produção. Grandes extensões rurais até aí cobertas pela vegetação natural, e economicamente improdutivas, foram desbravadas para nelas se semear o cereal nobre. Neste contexto, será explicável uma importância crescente da moagem tradicional até porque as formas de moagem motorizadas acrescentavam dificuldades pela falta de energia elétrica. A farinha produzida com motores diesel saía naturalmente encarecida e com dificuldades na concorrência das maquias a pagar. Além disso, apenas nas maiores aldeias – tipo sede de freguesia – existiam moagens motorizadas. Junto das populações, em quase todas elas, Iá estava o velho sistema do moinho de vento, ou de água, que satisfazia as necessidades locais.

Por caminhos a serpentear o monte, ou a acompanhar as margens das ribeiras, Iá seguiam os camponeses com as suas bestas de carga, levando sacos de cereal em grão, e trazendo de volta a farinha, num vaivém que dava vida aos campos, que hoje já não possuem.

3. Situação atual dos Moinhos no concelho (1988)

 A pouco e pouco essa vida, esse movimento, afinal uma época, foi desaparecendo dessas regiões sem alternativa.

 A emigração, as migrações internas — do interior para o litoral, provocadas pelo turismo e o urbanismo – as novas perspetivas económicas, as crescentes necessidades de bem-estar social como a saúde e a educação, trouxeram novamente o mato aos terrenos aráveis e a diminuição da população rural. A agricultura a partir dos anos 60 tornou-se uma atividade para os mais idosos, para aqueles que não tinham idade para aprender outro ofício…

 Os moinhos foram desativados, os mecanismos de rotação foram retirados ou então tudo foi abandonado! …

 Infelizmente esta é a filosofia que explica o estado de abandono e profunda ruína que caracteriza a situação atual da maior parte das instaIações moageiras tradicionais no concelho. Tetos caídos, madeiras podres ou desaparecidas, mecanismos metálicos oxidados e partidos, açudes e levadas quebrados. Restam geralmente as mós, que são pesadas e resistentes…

 Embora nos custe admiti-lo, a degradação da maioria parece-nos uma situação irreversível e dentro de 20/30 anos ninguém se lembrará que existia um moinho no alto daquele monte ou ‘no fundo daquela ribeira’.

 Poucos são os moinhos que ainda estão em laboração ou em condições de o fazer. Deles nos ocuparemos de seguida.

4. Moinhos atualmente em laboração (1988)

Embora o panorama se apresente extremamente desolador, como acabámos de referir, não deixaria de registar os ‘heroicos’ moinhos que atualmente ainda laboram ou estão em condições técnicas de o fazer, numa homenagem singela aos seus dignos proprietários ou moleiros. Sem voluntariamente querer omitir qualquer que seja (é possível que, no estado presente do nosso trabalho de campo, possamos deixar algum de fora), passaremos a identifica-los.

É na freguesia do Ameixial, bem ao norte do concelho, que encontramos o maior núcleo ainda em atividade: os moinhos de rodízio da Chavachã e Cascalheira (Ribeira do Vascão) e do Pisão (Ribeira da Corte) e o moinho de vento da Figueirinha. Todos ainda trabalham em regime sazonal.

 Em Alte encontramos a azenha das Águas Frias. Em Salir, o moinho de rodízio do Cardoso (Ribeira dos Moinhos) e o moinho de vento da Cumeada. Na freguesia de S. Clemente, o moinho de vento da Alfarrobeira, restaurado e propriedade de estrangeiros. Por fim, na freguesia de S. Sebastião poderemos encontrar os moinhos de vento de Alfeição e da Picota.

 A maior parte desta lista (exceção já salientada) está operacional, mas inativa.

 Como se pode observar, para um número global avançado de cerca de 130 moinhos, este efetivo é bastante diminuto e elucidativo.

Bom seria que os poderes locais e a iniciativa dos particulares conseguissem juntar esforços para restaurar em cada freguesia um moinho de cada tipo, para preservação deste valioso património cultural.

Bibliografia geral sobre o tema ‘Moinhos’:

BORGES, Nelson Correa“A farinação através dos tempos’ – História – Lisboa 1981

BRANCO, Fernando Castelo“Os Moinhos na economia portuguesa’ –  Rev. Port. de História – Coimbra 1961

DIAS, Jorge – “Moagem tradicional” – in  Dic. História de Portugal – III vol.

DIAS, Jorge; OLIVEIRA, E. Veiga; GALHANO, Fernando — “Sistemas Primitivos de Moagem em Portugal” — Porto 1959;

OLIVEIRA, E. Veiga; GALHANO, Fernando; PEREIRA, Benjamim“Tecnologia Tradicional PortuguesaSistemas de Moagem” — Inst. Nac. Investigação Científica — Lisboa 1983

USHER, Abott Payson —  ‘História das Invenções Mecânicas – I e II – Ed. Cosmos Lisboa 1973.

5º CONGRESSO do ALGARVE – 1988 – “Comunicações” – Racal Clube de Silves – Livro 1 – Pg. 95- 100.

Anexo

Mapa dos moinhos (de vento e de água) no concelho de Loulé