32 – Quintã Dona Maior

Mais uma vez me aventuro pelas questões de linguística e, neste caso, na área da toponímia.
No concelho de Mértola, a cerca de 30 Km a SO desta bela e antiga vila alentejana, existe uma pequena povoação cujo nome, apresentado na placa da estrada que lhe passa perto, é Quintã Dona Maior. Um nome curioso, porque parece impercetível o seu significado conjunto.
As três palavras que o compõem são palavras comuns na língua portuguesa (Quintã / Dona / Maior), mas em conjunto não fazem sentido, pelo menos para mim:

Quintã é um termo antigo que designava uma parcela de terra de uma grande propriedade arrendada a uma família pelo seu dono, que hoje poderá significar uma pequena aldeia, como há muitas pelo país;

Dona é uma palavra respeitosa que se faz anteceder o nome de uma senhora, também podendo identificar a posse de alguma coisa;

Maior é um adjetivo comparativo irregular de grande, ou de algo que tem uma dimensão superior a outra coisa.

Portanto, cada uma por si, é mais ou menos comum e conhecida, mas o conjunto, principalmente a ligação entre Dona e Maior, não me parece fazer sentido.
Vou então por outro caminho, com uma hipótese que poderá ser confirmada, ou não, evidentemente: terá havido uma má transição da tradição oral para a escrita, isto é, o som das palavras continuaria o mesmo, mas verdadeiramente seriam escritas de outra forma. A minha proposta é que o nome antigo teria sido Quintandona Maior, que teria passado para Quintã Dona Maior. A palavra Quintandona não é comum no sul do país, mas existem localidades no Norte com esse nome, nomeadamente na zona de Penafiel (cujo conhecimento há pouco tempo, me levantou esta questão). Assim poderria ser a Quintandona Maior, presumindo que houvesse outra mais pequena. Muitas vezes tem acontecido que os mapas de estradas, e as placas respetivas junto das localidades, induzem a esta alteração (veja-se como exemplo o topónimo de Dogueno, relativamente próximo, que derivaria do nome tradicional a do Gueno, que já abordei noutro artigo).
Se assim for, já faz algum sentido o topónimo mertolengo, porque de outra forma, da que está atualmente grafada, não parece fazer sentido para quem o lê.
É verdade que a muitas pessoas, talvez a generalidade de todos aqueles que por lá passam, esta questão não se ponha, mas a bem do conhecimento, levanto aqui a questão, uma vez mais, solicitando a boa vontade dos que disto sabem mais do eu, para nos informarem da razão deste topónimo.

31 – Sobre o nome de “Corte” na toponímia do SE de Portugal

Mais uma vez neste espaço me aventuro por uma área da linguística que pessoalmente acho curiosa, procurando explicação para a utilização de palavras e o seu significado, na maneira de falar das populações do Sul de Portugal.

 Neste caso, venho falar de um nome que é muito comum na toponímia do SE do País. Efetivamente, nas povoações do interior central e leste do Algarve e no território contíguo do Baixo Alentejo, há um nome que se repete:  é a palavra “Corte” (substantivo comum singular, feminino, lida com o O aberto, como sorte, norte, porte ou morte).

Vejamos alguns exemplos, eventualmente os mais conhecidos:

– Concelho de Loulé: Corte Garcia (freguesia de Querença); Corte d’Ouro e Corte João Marques

  (Ameixial); Cortelha e Cortinhola (Salir), que podem ser entendidos como diminutivos de corte;

– Concelho de Tavira: Corte Serrano (Cachopo);

– Concelho de Alcoutim: Corte da Seda;

– Concelho de Castro Marim: Corte Gago; Corte Pequena (Odeleite);

– Concelho de Vila Real de Santo António: Corte António Martins (Cacela);

– Concelho de Almodôvar: Corte Fidalgo e Corte Cabo (S. Barnabé); Corte Pinheiro e Corte Figueira

   Mendonça (Santa Cruz); Corte Zorrinho (Almodôvar);

– Concelho de Mértola: Corte Pinto e Corte Gafo.

Qual o significado e a razão da proliferação deste nome nesta região alargada do SE do país?

Vamos apresentar algumas ideias:

Na generalidade de Portugal a palavra corte, como nome comum e popular (não confundir com a Corte do Rei), tem um significado relacionado com um abrigo para gado, local ou espaço onde se recolhem à noite os animais herbívoros e domésticos que pastam nos campos. Tal como curral.

Poderia haver alguma relação destes topónimos com esta aceção da palavra, já que este território rural tem uma grande tradição histórica de pastorícia, e poder-se-á admitir que os rebanhos em presença fixa, ou em transumância, precisariam de algum espaço onde fossem recolhidos quando fosse necessário. Sabemos também que em séculos passados os rebanhos de pequenos herbívoros (caprinos e ovinos, principalmente) da zona litoral do Algarve eram deslocados no verão para o interior serrano, para os desviar dos frutos maduros da época, como os figos e as uvas, onde podiam causar danos nas colheitas. É o caso concretamente, por exemplo, do concelho de Loulé, onde era prática corrente essa deslocação entre o S. Tiago (25 de julho) e o S. Miguel (29 de setembro). Neste contexto, para identificar devidamente cada um dos poisos desses rebanhos, poderia dar-se a alguma povoação que lhe ficasse próxima este nome comum, a que se acrescentava o nome próprio. Ou até mesmo ser esse abrigo a originar a fixação de população num determinado local, e ter-lhe sido atribuído um nome em função disso. Esta é uma hipótese que poderia explicar o nome e a sua difusão …

Mas, para além de ser uma hipótese, nem todas as componentes são coincidentes e confirmam a explicação. Há um aspeto que considero relevante e que não condiz: se essa fosse a explicação para o nome e a sua frequência, seria de constatar que este nome continuasse a ser comum na vida corrente das pessoas que continuam neste território a viver da criação de gado. Ora o que acontece é que no vocabulário popular deste território (tanto quanto me é dado conhecer), não se utiliza a palavra corte para designar estes espaços ou instalações para o gado. Pelo menos no último século. Os nomes utilizados são curral, arramada, estábulo, pocilga, dependendo do tipo de animais que se abrigam. Assim sendo não fica a explicação anterior, que parecia plausível, confirmada pela tradição oral e escrita e, portanto, ficamos no limiar da explicação.

Uma vez mais, não tendo certezas, aqui apresento este tema, que poderá interessar a alguém que saiba mais do que eu, e que nos possa ajudar…

28 – Maneiras de falar…

A exemplo do que aqui fiz há algum tempo sobre Quarteira, vou hoje fazer uma pequena incursão na linguística (local), novamente referindo que não sou um especialista na matéria, mas apenas alguém que reflete sobre algumas situações curiosas nesta matéria. Se alguém que saiba mais do que eu, quiser apresentar explicações mais científicas para o que apresento, agradeço que o faça.

Concretizando: na zona sul do Baixo Alentejo, na área (pelo menos) dos concelhos de Castro Verde, Almodôvar e Mértola, que conheço relativamente bem, as pessoas têm o costume de se referir a alguns topónimos (nomes de localidades) de uma forma curiosa, que pode causar alguma dificuldade de perceção a quem não é da zona. Assim, por exemplo, dizem “estive na do Fialho”, “vou à do Corvo”, “fui à de Boi”, “à dos Grandes”, “a do Pinto”, “à de Neves”, etc.

Para quem é de fora, nota-se que falta aqui no meio da expressão qualquer palavra que a torne inteligível, mas que os locais entendem perfeitamente, e usam habitualmente. Não é uma falta completa da palavra, porque ela está subentendida, e daí não terem problema no seu entendimento. Mas, para complicar, também não existe uma explicação única para identificar a palavra em falta: poderia ser casa / herdade / povoação / aldeia, em todo o caso, como se depreende, sempre uma palavra no feminino. Vejamos cada uma das possibilidades:

Casa – também utilizam a expressão “fui à do meu tio”, ou “venho da do meu primo”, naturalmente querendo dizer que “fui à casa do meu tio” ou “venho da casa do meu primo”. Em todo o caso, referem-se a uma casa individual, de habitação ou de comércio (taberna/venda), de alguém conhecido de todos, pelo que neste caso não se aplicaria;

Herdade – típica fórmula da organização fundiária do Alentejo, que terá criado no seu contexto povoados com várias pessoas;

Povoação – referindo-se a qualquer aglomerado de habitações de maior ou menor dimensão;

Aldeia – povoação já com algum significado populacional e/ou administrativo.

Pelo conhecimento que temos dos costumes locais, também excluiria aldeia como sendo a palavra subentendida. E isto porque na zona as pessoas só chamam aldeia à sede de freguesia, à qual se referem quando dizem “vou à aldeia”, tal como dizem “vou à vila” quando se referem à sede de concelho.

Sobre herdade, poderá ter sido a origem de muitos pequenos núcleos habitacionais, mas hoje isso já não tem significado para a maioria dos topónimos a que nos referimos.

Assim, para mim, a palavra subentendida que melhor se adapta, seria povoação, ou outro sinónimo no feminino.

Também é curioso que, quando alguém, pelas suas funções, tinha necessidade de grafar a expressão (por exemplo,  os antigos párocos no registo de batismo, a JAE na identificação das localidades nas estradas) incorria geralmente em erro, porque não sendo da zona, não percebia esta forma de falar. É o caso por exemplo, de “a Donegas” por “a do Negas” (em S. Pedro de Sólis), ou de “Dogueno” por “a do Gueno”, sendo que a forma Dogueno se fixou pela placa da estrada nacional nº 2.

Claro que esta forma de subtender palavras não é exclusiva da zona. Há regiões onde as mulheres dizem “o meu (marido)”, como também se verifica na expressão humorística “Ó Abreu, dá cá o meu (dinheiro)!” .

Como diz o nosso povo, “Para bom entendedor… (meia palavra basta).”

25C -Em Quarteira, ou na Quarteira?

No último post que aqui deixei sobre a viagem do rei D. Sebastião, assinalei um pormenor de linguística que achei curioso porque já tenho pensado sobre este tema: o cronista escreveu que “ouviu El-Rei missa na Albufeira; (…) Veio El-Rei pela Quarteira”.

Trata-se da velha questão de haver topónimos (nomes de lugares/povoações) que são conjugados simplesmente com a preposição ‘em’ e outros com a contração da preposição e o artigo definido ‘o/a’. No caso vertente, as duas localidades na crónica foram designadas como a Albufeira e a Quarteira, o que atualmente se não usa no que se refere a Albufeira. Mas em relação a Quarteira, subsiste a dúvida: enquanto os algarvios dizem sempre “em Quarteira”, os turistas do norte do país dizem habitualmente que estão de férias “na Quarteira”. O que tem levantado algumas curiosas reações, nomeadamente nas redes sociais.

Eu não sou linguista, nem tenho pretensões a tal. Portanto corro aqui o risco de ser interpelado como foi o sapateiro por Apeles (“não vá o sapateiro além da chinela”). Mas interesso-me um pouco pela etimologia (origem das palavras), talvez porque no meu percurso escolar me entretive alguns anos com o Latim e o Grego. Mas nem isso aqui me ajuda, porquanto o Latim clássico, que forma o substrato da língua portuguesa não usa(va) o artigo definido.

Já em diversas vezes tenho perguntado qual é a regra gramatical que responde à questão que ponho, a pessoas que disto sabem mais do que eu, mas até agora nunca obtive uma resposta totalmente satisfatória.

Do que tenho pensado e ouvido, formulei uma hipótese que, não é geral, muito longe disso, mas que abrange muitos topónimos:

– Quando o topónimo corresponde a um nome comum, geralmente aplica-se a contração da preposição com o artigo definido. Alguns exemplos: no Porto; na Figueira; nas Alcáçovas; na Sertã; na Régua; na Beira; no Fundão; na Guarda; no Cais do Sodré; na Costa da Caparica; no Areeiro; no Ameixial; etc.;

– Quando não corresponde a um nome de uma coisa concreta, utiliza-se somente a preposição, o que me parece ser a forma mais comum. Alguns exemplos: em Lisboa; em Loulé; em Portimão; em Coimbra; em Braga; em Beja; em Évora; em Viseu; em Molelos; em Viana; em Tavira; etc.

O problema é que há imensas exceções em ambos os casos e, portanto, isto não pode ser uma regra geral. Alguns exemplos contra um e outro:

  • em Lagoa; em Faro; em Lagos; em Albufeira; em Chaves; em Barrancos; em Castelo Branco; em Manteigas; em Espinho; em Pombal; em Angra; em Armação; em Pera; etc.
  • no Alportel; no Montijo; na Raposeira; na Covilhã; no Cercal; no Crato; na Goncinha; na Tor; na Foia; etc. etc.

Portanto, esta é apenas uma hipótese de regra que não satisfaz completamente as necessidades. Mas também se costuma dizer que não há regra sem exceção (desde que as exceções não sejam tantas quanto a regra…).

Quanto ao caso concreto de Quarteira, as referências históricas mais antigas, da era cristã, identificam o topónimo de uma forma indefinida:

– O Foral de Loulé, dado por D. Afonso III, em 1266, de que só se conhece (na Torre do Tombo) uma cópia manuscrita dos séculos seguintes (XIV ou XV), num tempo em que os documentos oficiais ainda eram em Latim (tardio), refere-se a Quarteira por duas vezes mas, em ambos os casos, a palavra Quarteira é identificada já à portuguesa, antecedida da preposição de (indicando posse, pertença), e não declinada à maneira latina (no caso seria no genitivo), do seguinte modo:

“(…) Item retineo mihi et omnibus successoribus meis omnia molendina de Quarteyra constructa et construenda. (…) Et similiter retineo omnes hereditates de Quarteyra pro meo regalengo”. [Tradução quase desnecessária: “Igualmente retenho para mim e todos os meus sucessores todos os moinhos de Quarteira construídos e a construir. (…) E igualmente retenho para mim todas as herdades de Quarteira para meu reguengo”].

– Cerca de trinta anos depois, na carta de povoamento de Quarteira, já em Português arcaico, que o rei D. Dinis, em 1297, faz a Martim Mecham, diz-se que este “veo a mim e pediu que eu lhy desse o meu logar que chamam quarteira com todos seus termhos per a ssi e pera cinquoenta pobradores omeõs” [povoadores homens].

– No século XVII temos também a descrição de Alessandro Massaii, o famoso arquiteto  e engenheiro militar napolitano que, ao serviço da Coroa filipina redigiu a sua “Descripção do Reino do Algarve…“, de um levantamento, que fez em 1617/18, das condições militares das povoações algarvias, e em que se pode ler:

“Relação da villa de Loulé

Está situada em sitio alto, e bem acastelada e sercada  de muros (…) Dista do mar legoa e meia e na fronte della, na sua costa está hua armassão de atuns que se diz o zimbral que della tratei nas descripção de faro tem hua boa légua de praia que nella se pode facilmente embarcar e desembarcar a pé enxuto, e ficarem as embarcações a vado por onde a sobredita praia está muito sujeita a hum assalto ou bateria de mão, estando mais que na sobredita praia que se diz de quarteira não há mais do que hua torre que se diz almenara (…)”

– No meio destas três citações, está assim o texto discordante do citado cronista João Cascão (de quem pouco ou quase nada se sabe sobre a sua pessoa, ou naturalidade, segundo o Prof. Francisco de Sales Loureiro), que em 1573 utilizou, como vimos, as expressões “na Albufeira” e “pela Quarteira”. Ele era o cronista do Infante D. Duarte, que era neto do Rei D. Manuel e primo de D. Sebastião, portanto um homem próximo da Corte, e muito provavelmente não era algarvio. Não conheço mais nenhum documento antigo que se refira a Quarteira desta forma.

Em síntese, os documentos históricos são maioritariamente para o lado do em Quarteira. Embora não de uma forma absoluta e inequívoca, avalizam o modo atual dos algarvios se referirem àquela cidade.

Ligando à minha hipótese acima apresentada, precisaria de saber qual a origem da palavra Quarteira: se está ligada ao nome da mítica povoação de Carteia, ou apenas a uma realidade mais comum em que quarteira de algum modo se relaciona com um qualquer “quarteiro”, como antigamente se designava a quarta parte de um moio (medida de cereais correspondente a quinze alqueires), ou um tributo pago nessa quantidade, e assim leve alguns, por aproximação, a achar que podem dizer “a Quarteira”.

Assim, no momento atual penso que a utilização da forma algarvia de expressão baseia-se na tradição histórica e oral, e a das pessoas do Norte numa forma que eu designaria de facilitação linguística, talvez por a palavra Quarteira parecer referir-se a uma coisa concreta e próxima, sem ter em conta a tradição local. Ora eu penso que nestes casos deveria prevalecer o uso local e regional, que aqui é consensual entre todos os algarvios. Porque são eles que diariamente utilizam a palavra e porque isso corresponde a uma tradição histórica. Como diz o povo “cada roca com seu fuso, cada povo com seu uso”.

Fica aqui uma reflexão para quem poder e quiser ocupar-se um pouco com estas coisas. Se alguém tiver mais certezas, pois eu continuo interessado em saber.