37 – As Lendas das Mouras Encantadas do Algarve

Uma das tradições mais arreigadas na população do sul de Portugal, e nomeadamente do Algarve, é a das Mouras Encantadas. Grande parte das povoações desta região têm a sua lenda relacionada com este tema.

Trata-se de narrativas fictícias, que foram passando oralmente de geração em geração, não se sabe exatamente desde quando. Embora existam várias teses que tentam explicar a origem e o contexto do aparecimento deste tipo de narrativas, entroncando-os mesmo com outras culturas antigas, até de fora do contexto peninsular, penso que este caso específico da tradição meridional de Portugal provavelmente virá desde o período medieval, contemporâneo ou próximo da época em que se situam. Ao terem sido passadas a escrito e publicadas nos finais do séc. XIX, estão devidamente salvaguardadas na sua preservação.

Os relatos são de diferentes tipos, mas há um modelo que se pode considerar mais comum, e que se situa no período muçulmano na Península Ibérica, ou mais concretamente na sua fase final, a da reconquista cristã, pondo em ação a figura de reis mouros e alguma (ou algumas) filha, à qual são geralmente referidos atributos de grande beleza física – alvura de pele, olhos azuis e longos cabelos em ondeadas madeixas louras. Perante a ameaça da derrota militar, com a consequente morte ou cativeiro, às mãos dos cristãos, os reis mouros lançavam sobre as suas filhas um poderoso feitiço (encantamento), que as levava a ficarem inanimadas por muitos séculos num espaço profundo, muitas vezes um poço, uma fonte, ou uma gruta da povoação. Daí saíam em ocasiões especiais, apresentando-se em toda a sua beleza e juventude, acompanhadas por um qualquer objeto de ouro (pente, tesoura), e exercendo uma terrível sedução sobre quem as visse, normalmente os jovens rapazes que, só por terem contactado com elas, podiam incorrer na perdição de suas almas.

Outras narrativas não referem como se deu o encantamento, nem quem o realizou, apenas indicam o local em que aparecem, mas quase sempre no contexto que acima descrevo.

As ocasiões mais comuns para aparecerem no mundo dos vivos era no início do verão (muitas vezes pelo S. João), e à meia-noite, o que lhe elevava ainda mais a sua aura de mistério. Muitas vezes o feitiço lançado era reversível (desencantamento), se fossem realizadas por algum ser humano determinadas ações previstas, que até poderiam ser recompensadas por um tesouro, mas, enquanto não fosse possível a concretização dessas ações, o feitiço continuava, o que justifica a continuação destas tradições ao longo dos séculos…

Claro que, como disse, estas descrições são puramente ficcionais, portanto, não são suportadas pelos factos históricos e documentos que as comprovem. Não devem, portanto, ser interpretadas à letra, em busca de acontecimentos e datas concretos. Mas este tipo de narrativas poderia ser importante pelo contexto em que são apresentadas. Por algum motivo, surgem essencialmente no Sul e menos em zonas não relacionadas com a presença muçulmana, e assim refletem, no contexto desta presença, usos e costumes da época, as relações familiares, as dificuldades de relacionamento entre pessoas de religiões diferentes, a condição humana dos intervenientes, o medo dos fenómenos metafísicos, etc.

O interesse cultural deste tema torna-o apetecível para o grande público, que quer conhecer as lendas e eventualmente relacioná-las com algum espaço concreto que conheça. Lembro-me na minha infância um jornal matutino de Lisboa (“O Século” ou o “Diário de Notícias”, já não posso precisar) ter publicado durante muito tempo, diariamente, muitas destas lendas, e que também podem ser lidas nas obras que cito na Bibliografia, das quais destaco a reedição da coletânea recolhida por F. X. Ataíde d’Oliveira nos finais do século XIX, grande conhecedor da história e tradição algarvias, retratadas também nas várias monografias que escreveu sobre localidades desta região.

A importância cultural deste tema também se comprova pelo facto de existirem teses universitárias de mestrados/doutoramentos sobre o mesmo.

A título de exemplo, cito aqui algumas das lendas mais conhecidas do Algarve: A Moura Cássima (Loulé); as Mouras de Salir, Alte, Querença e Ameixial (Loulé); As Mouras de Paderne; a Moura de Faro; A Moura de Olhão; A Moura do Castelo da Tavira; as Moura de Alcoutim, de Vaqueiros e de Giões; A Moura de Silves; a Mourinha de Bensafrim; etc.

Há também casos no masculino: Os Mouros de Albufeira, de Castro Marim, de Alportel; etc.

Espero com este pequeno texto ter feito relembrar histórias de infância aos mais velhos, e suscitado alguma curiosidade nos mais novos sobre este tema tão interessante da tradição cultural algarvia.

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Bibliografia:

MARTINS, Ana Cristina – “Mouras Encantadas e outras Lendas” – Arandis Editora

MEIRELES, Maria José – “Lendas de Mouras Encantadas” – Campo de Letras – 2006

OLIVEIRA, Francisco Xavier d’Ataíde – “As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve” – Ed. Notícias de Loulé – 1996 – reedição de obra publicada em 1898.

OLIVEIRA, Francisco Xavier d’Ataíde – Diversas Monografias de localidades algarvias – editadas pela Algarve em Foco – anos 1980.

29 – Outras curiosidades da mesma zona do Baixo Alentejo

Há poucos anos estive na aldeia e sede de freguesia de Santa Cruz, no concelho de Almodôvar. Uma pequena povoação, com um casario bem cuidado e maioritariamente pintado de branco, numa orografia que ainda a liga à serra do Caldeirão.

Num breve roteiro que fiz na zona, o que mais me despertou a atenção foi a localização do espaço sagrado local. O cemitério da freguesia fica situado a mais de 400 metros da zona habitacional. E a histórica igreja matriz (manuelina – séc. XVI) ainda mais longe, mais outros 400 metros (pelo caminho melhor, porque parece haver outro antigo, de pé-posto, um pouco mais curto).

Este distanciamento de igrejas e cemitérios em relação à povoação é uma situação recorrente pelo menos nos concelhos de Almodôvar, Castro Verde e Mértola, como se pode também confirmar em Corte Figueira Mendonça, Santa Bárbara de Padrões, S. Pedro de Sólis, S. Miguel do Pinheiro, S. João dos Caldeireiros, S. Sebastião dos Carros, etc. Parece ser uma situação excecional, num processo assumido, este afastamento do espaço sagrado, quando todos sabemos que historicamente a tradição cristã nacional (e europeia) punha a igreja e o cemitério no centro da povoação, em volta dos quais se desenvolvia a área residencial. Só no séc. XIX, com o governo dos Cabrais (o que até foi causa da revolta da Maria da Fonte, no Minho) é que se iniciou o afastamento dos cemitérios do centro das povoações, por razões de saúde pública. Mas as igrejas paroquiais sempre permaneceram no centro.

Depois, uma pequena visita à igreja matriz local, anunciada em tabuletas como monumento a visitar, continua a surpreender-nos. É um templo de razoável dimensão, de três naves, com o reportório habitual e assinalável da arquitetura manuelina, e outros elementos posteriores, nomeadamente da época barroca. O facto de estar quase permanentemente fechado, não sendo local habitual de culto, origina a rápida degradação do edifício a que as reparações levadas a efeito não têm conseguido por termo.

Mas ainda há mais aspetos invulgares: no espaço envolvente desta igreja, numa zona isolada, escondida e de relevo acidentado, encontramos ainda as ruínas de duas outras capelas (ou deveríamos dizer ermidas) de uma só nave, em estado de completa ruína, de que só restam as paredes exteriores de relativa dimensão, a indicar-nos que aquele espaço era efetivamente o espaço sagrado da freguesia, mas que os fregueses quiseram separado, para todos os efeitos, do espaço profano das suas vidas. E ainda que, enquanto estas capelas em ruínas ocupam a parte superior de uma colina, a igreja matriz fica situada num plano mais baixo da encosta, num patamar pouco acima do vale que se estende ao lado. Portanto, mais uma originalidade, a igreja principal da freguesia situar-se num plano mais baixo e mais escondida do que outros templos de menor dimensão e importância, no mesmo exclusivo enquadramento.

Tenho algumas hipóteses de explicação para estas particularidades de antropologia cultural que tentarei aferir, mas se alguém, dos que conseguiram ler este texto até ao fim, quiser apresentar desde já alguma tese explicativa, muito agradeço.