26E – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé

5 – A evolução e desaparecimento desta coletividade

 Deixámos já atrás explícito que a atividade da Sociedade de que tratamos não afinou pelo diapasão da regularidade. Vários foram os períodos que não se fizeram sessões, nem se sabe se manteriam os membros entre si algum elo de ligação.

 Não existiram praticamente cisões internas, nunca, ao que consta se formaram min-grupos com diferenças marcantes entre si. Existiram, isso sim — e parece-nos que tal é normal, acontecendo em qualquer tipo de associações— algumas saídas singulares de membros do grupo. Alguns tiveram que se deslocar, abandonando naturalmente o grupo, outros, por qualquer motivo demitiram-se (doença, velhice), outros ainda (pelo menos um) foram expulsos por não pagarem as quotas, nem para tal darem uma desculpa.

 No entanto, e neste contexto, a mais importante separação surgiu nos finais do ano de 37. Separadamente, foram-se afastando Cláudio José Pinto, “atacando o Presidente e a Sociedade”, Carlos André Pinto, o padre Domingos de Sousa Viegas, o tesoureiro Francisco Martins Andrade e, por último, o mais importante – o padre José Rafael Pinto, que havia algum tempo não assinara os estatutos revistos e pedira a sua demissão “em consequência da sua idade e moléstia”.

 Estas saídas efetuaram-se entre 31 de agosto e 31 de dezembro de 1837, não tendo assim constituído uma saída em bloco. Mas é significativa! Três membros da família Pinto (entre os quais, o dinâmico Pe. José Rafael Pinto, o velho) que desde inicio participavam na Sociedade e até foram os seus principais fundadores.  Lembre-se que o Prior Pinto fora o primeiro Presidente da coletividade e Cláudio José Pinto, o primeiro Diretor. Além destes, e talvez por simpatia para com o seu colega, o Pe. Domingos de Sousa Viegas, também sócio antigo, e ainda o tesoureiro Francisco Martins Andrade, cujos antecedentes se desconhecem.

A que correspondia isto? Eis uma questão a que é difícil responder. As atas não se referem pormenorizadamente ao facto, antes o abordam sumariamente. Como vimos, desconhecem-se os estatutos e, muito menos se sabe do que constaram as suas alterações.

 Questões de ordem interna? Problemas levantados no seio do grupo? Ou questões de ordem externa, relacionadas com a revolução de setembro do ano transato e seu posterior regime político?

 Só nos aparece uma coisa como certa – que os problemas são levantados diretamente pelos estatutos revistos.

Nas sessões anteriores à demissão do Prior Pinto, é este fortemente censurado, tendo sido dito que “tem mostrado pouco interesse pela sociedade”.

 De qualquer modo estes membros aparecem-nos como minoria no contexto social do Gabinete. Entretanto a sociedade ainda ia, talvez, no seu caminho ascendente. Teria sido apenas um acidente de percurso…

 Até 1841-42 a Sociedade pode dizer-se em atividade normal, para daí em diante se mostrar cada vez menos ativa, como vimos, até 1848. Aliás, a data considerada final – 20 de fevereiro de 1848 – é marcada por una ata bastante lacónica, sem termos ou significado de maior, não aludindo explicita ou implicitamente a que seria a última. Também assim acontecia naquelas que se seguiam a longos períodos de passividade, em que não se expunham as causas nem se aludia ao facto de a sociedade ter estado inativa. A ser certo que a sociedade acabou mesmo em 48, temos de considerar aqui que ela “morreu” de velhice, sem quaisquer sobressaltos. Na sequência lógica das longas paragens intermédias. Naturalmente…

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26D – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé

4 — A vida cultural e mundana

 Além de uma relação importante com os eventos políticos de maior significado, que ao longo do seu período de atividade houve, teve ainda a dita sociedade tempo e disposição para se dedicar aos aspetos de índole cultural. Talvez até fosse essa, aliás, a razão principal da sua existência, o seu suporte estruturai, aparecendo-nos então as manifestações de ordem política como questões pontuais, acerca das quais a sociedade tomava uma posição pública.

 Para que a cultura e o conhecimento dos factos fosse uma das características dos membros da Sociedade, adquiria esta bastantes exemplares de livros e jornais que ao tempo existiam no país e que mais se coadunassem com a ideologia do Gabinete. Mas, convém frisar, não se compravam somente os “seus” jornais, adquiria-se todos os anos a assinatura de “um periódico da oposição’, mostrando talvez assim a sua abertura às ideias contrárias.

 Foram os seguintes os jornais que a Sociedade foi adquirindo, por ordem cronológica:

 a) a partir de 31 de maio de 1836:

 b) assinaturas oferecidas pelo Juiz de Tavira, Gonçalo Magalhães Colaço, em 3 de julho de 1836:

 – “Independente”;

 – “Diário do Governo”

 – “Nacional”

 – “Revista”

 – “Artilheiro”

 – “Periódico dos Pobres”

 – “Movimento”

 – “Minerva”

 – “Industrial…?”

 c) a partir de 30 de setembro de 1836:

  – “Porto Franco”

 d) a partir de 9 de abril de 1837:

  – “O Hespanhol”;

  – “O Examinador”

 Em 15 de agosto de 1837 são considerados mais importantes os seguintes jornais e completadas as suas coleções: “Diário do Governo”, “Nacional”, “Periódico dos Pobres”, “Arquivo Popular” e “Anómalo”,

 Os restantes não foram completados. Mas continuemos:

 e) a de 31 de dezembro de 1837:do 37

  – “Recreio de Família”,

Em 31 de janeiro de 1838 considera-se que “0 Procurador dos Povos”, da oposição “não estava em condições de ser assinado pela sociedade”.

 f) a partir do 15 de fevereiro de 1838:

 – “O Tempo”.

 Nesta data refere-se que o “Hespanhol” era assinado em Madrid e que os Correios eram frequentemente intercetados entre Madrid e Ayamente. Prossigamos:

g) a partir de 25 de junho de 1838:

– “A Hespanha”;

 h) a partir de 29 de dezembro de 1838:

– “Lusitano”;

– “Panorama”.

i) a partir de 31 de dezembro de do mesmo ano:

– “O Chocalheiro”

j) a partir de 31 de janeiro de 1839:

– “O Mensageiro”;

l) apartir de 28 de fevereiro de 1839:

– “Pobres do Porto”;

m) desde 11 de março de 1840:

– “Março Pitoresco”.

n) desde 3 de jeneiro de 1844:

– “Revolução de Setembro”.

o) desde 12 de dezembro de 1844:

– “O Patriótico” – da oposição.

Convém aqui frisar que os jornais eram escolhidos em janeiro e em julho para os semestres seguintes. Daí que a sociedade não assinava todos os jornais apresentados, ao mesmo tempo. Esta lista refere-se, repetimos, aos jornais assinados ao longo da atividade da Sociedade.

A única referência qualitativa que ao longo das sessões se faz dos periódicos, á acerca do ‘Independente”, considerado “dos mais bem redigidos do país”. Sobre este mesmo jornal, José de Arriaga na sua obra já citada diz que é “moderado, sincero e bastantes vezes ingénuo”.

No entanto, o mais importante de todos deverá ter sido o “Panorama”, que aparece em 1837 e de que Alexandro Herculano foi diretor.

Sobre os livros ou outras publicações existentes, as referências são menores, não porque não existam (compreende-se através da leitura das diversas atas que elas existiam),  mas porque não são mencionados os seus  títulos. Vejamos, ainda assim, os que explicitamente se sabe que existiam:

– “Anaes da Sociedade Promotora da Indústria Nacional”

– “Instruções sobre agricultura, artes e indústrias “

– “Constituição de 1838”

– “História Portuguesa” da Castilho – “obra interessante”

– “Mapa do Algarve” de J. B. da Silva Lopes

– “Folheto com a descrição da praça de Gibraltar”

 Além destes (poucos) aparecem ainda as seguintes alusões:

 “Ofertas de livros à Sociedade” (em 1 de nov. 1836)

 “O prior Pinto oferece alguns livros que tinha na Sociedade” .

 Sabe-se ainda que existia uma biblioteca, para a qual houve um pedido para que à Sociedade ficassem a pertencer os arquivos dos conventos da Graça e Capuchos, à Rainha, o que não se sabe se foi deferido.

Quanto a outras manifestações mundano- culturais devem salientar-se as comemorações que, todos os anos, se faziam no dia 29 de dezembro – dia da instalação da Sociedade. O Presidente em exercício discursava em sessão pública e depois seguia-se o baile respetivo.

 Nas festas era ainda frequente jogar-se o “balancé” e tomarem-se refrescos.

 Já com alguns anos de atividade, resolveu a sociedade rejeitar uma proposta de compra de um bilhar e de jogos de tabuleiro, tendo, no entanto, aderido ao “jogo da bola” (curioso) em que participavam oficiais do destacamento aquartelado na vila.

Em aspeto de caráter caritativo citemos ainda um jantar oferecido aos presos no 1º aniversário, bem como uma “esmola em dinheiro às viúvas necessitadas das vítimas da usurpação”.

Enfim, também neste aspeto a sociedade acompanhava os progressos que a imprensa fazia. Talvez os melhores periódicos da época estivessem dentro da lista apresentada.

 É de assinalar ainda a influência que a Espanha exercia e que se manifesta na assinatura de pelo menos um jornal espanhol. É que a Andaluzia está muito próxima do Algarve, são zonas geográficas afins e complementares.

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26C – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé

3 – As relações da Sociedade com a evolução política do País

 Já foi aflorada aqui a particularidade de este gabinete de leitura ter alguma relação com a evolução política que se ia processando por todo o país. Também já se concluiu (pela definição do grupo e pelos seus atos) que esta sociedade se podia catalogar politicamente de liberal. Passemos a interessar-nos por alguns factos quo podem demonstrar esta tese.

 A primeira manifestação pública de natureza política que a coletividade organizou foi pouco tempo depois da sua criação, aquando do aniversário natalício de D. Maria II, “Rainha Constitucional“, que se teria passado em 4 de abril de 1836. Constou a festividade (como parece ser hábito na época, porque se repete várias vezes) de um baile e bastante iluminação. Para o baile convidaram-se as “pessoas decentes da vila”. A festa teria sido organizada por uma comissão e tendo sido levada a cabo, entre outras pessoas, por “algumas senhoras que colaboraram“, e que na sessão posterior da sociedade foram alvo do um agradecimento da coletividade. Interessante verificar que, não havendo registo de senhoras entre os membros da sociedade, a elas recorreram para prestarem a sua colaboração na festividade. Com certeza que essas senhoras eram as esposas de alguns membros do Gabinete, talvez mesmo dos que formavam a comissão organizadora. A sua participação deve ter-se limitado a levar a efeito o serviço de bufete (doces, bolos e algumas bebidas, como o chá) durante o baile.

 Um segundo acontecimento, de longe o mais importante, quer pela sua ressonância política, quer pela forma como foi celebrado –  surge em 13 de setembro de 1836. Que se passa então? Citemos as palavras do secretario da sociedade na sessão daquela data:  “Chegou de Lisboa a fausta notícia de que na capital se tinha proclamado a Constituição de 1820 (sic), a que Sua Majestade a Rainha tinha anuído” (facto que tinha acontecido em 10 de setembro de 18 – N. A.).

 A Sociedade devia dar demonstrações de regozijo e que se deveriam convidar as autoridades e todos juntos se dirigissem aos sítios mais públicos desta vila e aí vitoriassem a Constituição de 20. (…)

 Não foi possível aos membros da Sociedade sufocar por mais tempo os transportes de alegria em que superabundavam seus corações.  Prorromperam vivas à Constituição, à Rainha e a S. A. Seu digno esposo e, tendo-se acalmado os ânimos dos entusiasmados membros da sociedade, entrou a sessão na devida ordem. (…) Nomeou-se uma comissão para ir convidar as autoridades. A aclamação seria feita no próprio dia à noite. Algum tempo depois, chegavam o Presidente da Câmara, o Juiz de Direito, o Administrador do Concelho e o Comandante da força militar da vila.

 Foram para a praça principal, precedidos da Sociedade Filarmónica.

Foram dadas vivas aos já citados e a todos os amantes da liberdade com particularidade aos Malaguenhos proclamadores da Constituição do ano 12, sendo estes vivas proclamados pelo imenso gentio que naquele sítio se tinha agrupado, e pela tropa com grande entusiasmo. A Sociedade Filarmónica tocou o hino de 1820 e mais hinos patrióticos.”

Assim foi descrita por José Francisco Cavaco a preparação e a realização das comemorações, no próprio dia em que em Loulé se soube tal notícia.

 Cabe aqui um pequeno pormenor que é o de, na maior parte dos casos que em que se alude à Constituição proclamada em 1822, se denominar esta de “Constituição de 20′. Este próprio facto aconteceu em Lisboa, quando se pediu a sua reposição à Rainha. Representa talvez uma aproximação aos ideais “vintistas”.

 Mas analisemos as comemorações, para delas podermos extrair algo de proveitoso para o nosso estudo.

 Repare-se, desde que já, que a notícia levou cerca de 3 dias para chegar a Loulé, o que prova a distância real e efetiva que existia entre o Algarve e Lisboa.

 Toda a descrição se refere, do princípio ao fim, à alegria e entusiasmo com que os membros da sociedade acolheram a “fausta noticia“.

 Da sociedade partiu a iniciativa das comemorações, para o que posteriormente foram convidadas as autoridades louletanas, que aqui demonstram, além de uma adesão aos mesmos ideais vintistas, uma respeitosa consideração pela sociedade como grupo importante na vila.

 Acompanhados pela Sociedade Filarmónica dirigiram-se todos para a praça principal (hoje talvez o Largo Gago Coutinho) e aí se tocaram “hinos patrióticos” e lançaram vivas às supremas autoridades do Reino. Sabe-se ainda que no dia seguinte continuaram os festejos “em honra dos felizes acontecimentos ocorridos nesta vila”. Organizou-se um baile “e competente chá, para o que se convidaram as pessoas decentes da vila”. O baile fez-se na sala de Audiências do Tribunal.

 Na sessão seguinte, em 16.set.1836, fez-se o “Juramento pelos membros da sociedade, de fidelidade à Constituição proclamada em 23.set.1822”.

Fez-se ainda uma felicitação à Rainha e um pedido de armas para a Guarda Nacional “para sossego e segurança dos habitantes da vila”.

 Ora bem, continuemos a nossa análise.

 Parece-nos que a grande conclusão a tirar é a de que a Sociedade participava de um ideal altamente liberal, no sentido mais revolucionário de 1820. A Constituição, elaborada e promulgada em 22, foi, como já aqui foi dito, a bandeira do um certo liberalismo de esquerda, quase no sentido “democrático”. Com efeito, era imensamente mais esquerdista do que a Carta Constitucional dada por D. Pedro IV em 1826 e que. dez anos mais tarde, ainda se encontrava em vigor.

 Alguém que, passados que tinham sido catorze anos, ainda defendia a primeira Constituição que houve Portugal, teria forçosamente que alinhar na ideologia que lhe é subjacente, a ideologia por que tinham lutado (sem grandes resultados práticos, aliás) homens como Manuel Fernandes Tomás, “o pai da liberdade portuguesa”. De outra forma não se pode compreender um tão grande empenho, uma tão grande alegria depois de conseguida a reposição da Constituição de 22. Aliás esse facto, além do aspeto ideológico, viria a alterar e a melhorar sensivelmente a maneira de viver dos habitantes de uma vila a cerca de 300 Km de Lisboa? Com certeza que materialmente os ganhos foram muito poucos…

Talvez em Loulé se desconhecessem, de início, os meandros e tentativas de ganhar tempo de que a Rainha se fez uso. Talvez por isso ela fosse bastante aclamada nas comemorações!

Outro aspeto, e que não poderá passar despercebido é o das vivas dadas aos Malaguenhos – “amantes da liberdade” – que tinham proclamado a Constituição de Cádis, promulgada na relativamente longínqua data de 1812 e que ideologicamente era do teor da nossa de 22, ou vice-versa…

 Aqui se denota que se fazia uso no Gabinete de um dos itens apresentados em 1820, no projeto de associação patriótica de Lisboa: correspondência com países estrangeiros, para se saber o que se passa no exterior.

 Por tudo isto, efetivamente, a Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé, não deslustrava em nada, pelo contrário, as suas congéneres mais célebres das grandes cidades portuguesas já citadas.

Um último pormenor sobre estas festividades – o pedido de armas para a Guarda Nacional “para sossego e segurança dos habitantes da vila”. Aqui se entrevê que se sabia de antemão que não seria mais respostas que se repunha a Constituição de 22. Se entrevê também uma alusão a forças conservadoras que praticavam atos de banditismo, como é o caso concreto das guerrilhas do já citado “Remexido”, José Joaquim de Sousa Reis.

 Os restantes acontecimentos de natureza política são, como já ficou dito atrás. de menor importância. Citemo-los:

 Na sessão de 22 de Setembro de 37 regista-se a “alegria pelo nascimento do príncipe herdeiro”, tendo-se feito “uma manifestação pública de regozijo“, no dia do batismo.

 Uma última manifestação, que de certo modo tem um caráter interno, é o de “uma felicitação ao sócio Fontoura (General), pelo grande acontecimento da captura do infame guerrilha Remexido”, e a subsequente deputação que se faz a Faro ao mesmo general (que, no entanto, nesta última data aparece referenciado como Coronel Fontoura – 15 de agosto de 1836).

 Parece-nos que tudo o que ficou dito prova cabalmente as conclusões que também já ficaram expressas, entre as quais avulta a do patriotismo e defesa dos ideais vintistas pelos membros da sociedade no seu conjunto.

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26B – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé

2 — Quem formava o Gabinete

 No capítulo anterior já ficou dito que a sociedade era formada pelas pessoas mais ilustradas de Loulé e zonas vizinhas, com uma posição social que lhes dava as condições necessárias para acompanhar o “processus” político e cultural do País.

Sabe-se que tinha uma composição, logo no seu início, de dezasseis sócios, os quais aumentaram para vinte e seis, até ao fim do ano de 1836, tendo, entretanto, e fora destes números, desistido um.

 0 seu primeiro presidente foi o citado Pe. José Rafael Pinto, que exerceu a sua profissão em Loulé entre 1834 e 1864, homem muito conhecido localmente, e cuja atividade ímpar bastante prestigiou a vila, através da sua dinâmica de pessoa ligada a diversas atividades culturais, entre as quais as letras e a música(em que parece ter tido papel de relevo ao fundar uma filarmónica, assunto que trataremos na 2ª parte deste trabalho).

Além de José Rafael Pinto, alguns outros membros da sua família vieram a pertencer à sociedade, ou exerceram cargos bastante importantes posteriormente, como Cláudio José Pinto, primeiro Diretor da Sociedade; José Cláudio Rafael Pinto, sobrinho do primeiro e também clérigo; e ainda Aurélio Cláudio Rafael Pinto, Juiz de Paz em Loulé em 1867.

 Outros elementos de renome em Loulé vieram também a fazer parte da sociedade. Assim temos os drs. Manuel António Vieira e Francisco de Freitas Oliveira; o tabelião em 1867 (data que existe pela primeira vez na Conservatória do Registo Predial local) José Francisco de Freitas; José Caetano Benevides, homem bastante rico da vila.

Além de todos estes devem destacar-se seguidamente os nomes dos bastantes clérigos que enfileiram entre os sócios da coletividade. Depois dos dois familiares já referidos, dela fizeram parte Diogo de Oliveira e Horta, Domingos de Sousa Viegas, José Agostinho Teixeira, pároco de Salir, José Inácio Palma, Joaquim António Oliveira e Francisco de Paula Ataíde, pároco de Porches-Lagoa.

Conviria, em face desta situação, responder à questão “por que se interessam desta maneira os eclesiásticos pela sociedade?”. Com certeza o Clero formava conjuntamente com alguns Burgueses o grosso das camadas mais cultas da sociedade rural. Por este aspeto parece lógico que uma sociedade de caráter cultural tivesse em suas fileiras bastantes padres. Mas, e o aspeto ideológico? Sabendo, como se sabe, que dos dignatários da Igreja partiram as principais forças contrárias à revolução de 20 (caso do Patriarca de Lisboa e do bispo de Beja, entre outros), como explicar o facto, partindo ainda dos dados iniciais de que estas sociedades eram liberais? Sabe-se também que o prior Pinto, por vários documentos e tradição, era um grande liberal. Aliás o facto de clérigos serem de ideologia liberal não era inédito, como acontecera nas Cortes Constituintes de 1821-22 em que José de Arriaga enaltece a ação conduzida por alguns.

Talvez a resposta se encontre por outro meio. É que a Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé era, pelos motivos já expostos, um pouco menos ativa politicamente do que as suas congéneres mais famosas, a de Lisboa e do Porto. Mas não exageremos este pormenor, porque em várias ocasiões, que teremos oportunidade de mostrar, a sociedade sempre se mostrou do lado dos ideais vintistas e a favor da Constituição de 1822. Concluiremos assim que os referidos padres estavam mesmo empenhados nos ideais liberais.

Quanto a todos os outros sócios, deveriam ser, portanto pessoas da classe média, digamos média e pequena burguesia rural ou comercial, algo instruída e de ideologia predominantemente liberal, em que alguns são apresentados como de “negócios”. Efetivamente ainda hoje o comércio é o principal sustentáculo económico da vila.

Um outro aspeto que nos Ieva a concluir que a posição da maioria (senão da totalidade) era da pequena e média burguesia, ou por essa volta, é o de que, sempre que havia festas e bailes de qualquer natureza, organizados pela sociedade, se convidavam sempre as “pessoas decentes da vila“. Que significa, portanto, esta expressão? Não será sinónimo de pessoas de bem (bens), medianamente estabelecidas, de forma a dar mais prestígio à sociedade? Aliás isto vem dentro do contexto da ideologia liberal, com as célebres divisões entre pessoas ativas e passivas, em quo nem todos têm o direito ao voto porque não estão devidamente capacitadas para tal.

 Parte do momento em que o chamado “Terceiro estado” se desmembrou para dar lugar de primazia à Burguesia, que deste modo se apodera sozinha do aparelho de Estado. Tal é o modelo prático do Liberalismo, e tal deveria ser a atitude dos liberais das zonas rurais, que deveriam manter para com as forças conservadoras uma posição de pessoas de bem que, no entanto, estariam interessadas em implantar um regime que, não obstante, e pela sua abertura, era bastante diferente do Absolutismo do Antigo Regime.

 A sociedade tinha ainda, além dos já referidos, e que se caracterizavam por sócios ativos, alguns outros bastante reputados, como era o caso do Dr. João Viana Resende, médico em Lisboa e do Dr. José Maria Guides, cirurgião-mor da província de Mato Grosso – Brasil, e ainda do “insigne poeta” Francisco António Martins Basto, bem como do bacharel em Leis (em 1853 juiz de Direito em Loulé João Ferreira Pinto, os quais eram sócios correspondentes.

Em lugar de destaque, e por último, contam-se entre os sócios desta coletividade, a partir de 4 de fevereiro do 1838, o General Fontoura, “suprema autoridade civil e militar nos três distritos de Faro, Beja e Évora” (e que viria a participar na captura do famoso guerrilheiro miguelista- legitimista Remexido, como adiante veremos), e ainda o capitão de Caçadores 4 (com um destacamento aquartelado na dita vila) António Joaquim Pimentel Jorge.

 Recebeu ainda o Gabinete visitas frequentes de importantes personalidades em serviço no Algarve, como: Joaquim Pedro Judeci Samora – “deputado ao Soberano Congresso Nacional”, em 15.fev.38 e ainda Gonçalo Magalhães Colaço, juiz de direito em Tavira, em 3.Jul.36; as autoridades militares: José Pedro Celestino Soares – coronel comandante da 8ª Divisão e encarregado do governo militar do Algarve, acompanhado de um tenente-coronel comandante de caçadores 15 e dum capitão do mesmo corpo, respetivamente Filipe Correia de Mesquita e  António Luís Meireles, em 18.Jul.37.

 Em 30 de setembro de 1836 fazem-se agradecimentos ao provedor interino do concelho “que fez bastantes benefícios à sociedade”.

 Enfim, da boa composição social e prestígio da coletividade, parecem não restar dúvidas. Deveriam ser mesmo as pessoas mais capazes que então em Loulé havia.

 Da importância e peso político do Gabinete dava-se frequentemente conta a Câmara Municipal, que com ele mantinha boas relações e em conjunto organizavam festividades para as datas históricas que sempre se iam comemorando.

 A reputação que alguns dos seus sócios correspondentes (e não só) tinham, dava-lhe ainda um caráter mais elevado, na medida em que ilustres personalidades se dignavam fazer parte dele ou manter correspondência assídua.

 Muitas instituições públicas também mantinham contactos com o gabinete. É o caso, por exemplo, da Sociedade Promotora da Indústria Nacional.

 Sobre os restantes componentes da Sociedade, veja-se o APÊNDICE final com a lista dos que fizeram parte dela, ao longo dos anos em que esteve em atividade.

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26A – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé

I – SUAS CARACTERÍSTICAS

1 — A sociedade no contexto das sociedades do género que a partir de 1820 se criaram por todo o País

 Quando em 9 de dezembro de 1835, o Prior José Rafael Pinto, o velho, propôs a uma assembleia de homens ilustres da prestigiosa vila de Loulé, a criação de um gabinete de leitura na mesma vila, estavam lançadas as bases de uma coletividade que bastante contribuiria para o nome e fama daquela localidade.

Não foi das primeiras sociedades de carácter cultural que se criaram no País. 1835 já era uma idade que distava quinze anos de 1820 (ano de Revolução Liberal). A partir desta data (1820), com efeito, por todo o País e com especial destaque, é evidente, para Lisboa e Porto e até Coimbra (centro tradicional de contestação e estudantil) se formaram umas coletividades que, sendo de cariz político marcadamente liberal, além de uma atividade cultural, se interessavam abertamente pela implantação do regime constitucional em Portugal.

Logo em 26 de setembro de 1820 foi apresentado à “Assembleia Portuguesa” um projeto de associação patriótica nos moldes atrás descritos e que se pode verificar no que seguidamente citamos:

 “… Entre essas instituições ocupa um distinto lugar a de um gabinete de leitura, aonde se achem reunidos todos os escritos que próprios sejam para ilustrar e guiar a nação na inteligência e esforços aplicáveis ao prosseguimento da árdua mas heroica empresa de estabelecer e firmar a liberdade pela mais perfeita constituição…”1

Requeria-se ainda que, para o cabal desempenho das suas funções, este gabinete de leitura carecia de, resumidamente, estes itens:

1º – Conhecimento particular dos escritos que poderiam interessar à sociedade, dentro do âmbito para que fora criada:

2º – Correspondência com países estrangeiros, para se saber o que se passa no exterior;

3º – Fundos pecuniários suficientes para a aquisição de livros, jornais e outros materiais necessários;

 4º – Locai cómodo onde se instale o gabinete, e onde em tranquilidade possa prosseguir os seus fins;

 5º — Fundos pecuniários suficientes para a sua fundação e conservação.

 Este projeto viria a constituir a célebre “Sociedade Literária Patriótica de Lisboa”, fundada no dia 1 de janeiro de 1822, e onde teve um papel bastante ativo Almeida Garrett.

Efetivamente aqueles eram os desígnios e de certo modo as finalidades implícitas dos gabinetes de leitura que se iriam espalhar por todo o país, e que em quase todas as capitais de distrito, pelo menos, existiriam.

Se atentarmos na transcrição que acima fizemos, podemos verificar que uma das grandes preocupações era a de “prosseguir a árdua, mas heroica empresa de estabelecer e firmar a liberdade”. Ora em 1820, apresentar propostas deste género só poderia ser de liberais esclarecidos, que anteviam desde logo que essa finalidade não poderia ser atingida sem luta contra as classes mais interessadas na situação que anteriormente se vivera em Portugal.

Era ainda necessário “ilustrar e guiar a nação na inteligência” através de escritos que o pudessem fazer. O povo português estaria num estádio cultural bastante atrasado e dominado pelas forças mais conservadoras e, se se que queria trazê-lo ao seio das forças que agora lutavam pela liberdade, era necessário ilustrá-lo, demonstrar-lhe eficientemente que o caminho a seguir teria que ser outro, para que efetivamente todos (ou a maior parte) se sentissem irmanados no ideal que vinha da França de 1789.

 Talvez melhor que tudo e todos, esta missão de instruir deveria estar a cargo de sociedades de carácter cultural e político ao mesmo tempo, visto que eram estas coletividades quo estavam mais entranhadas nas camadas populares do interior nacional. A elas caberia dinamizar, não só em Lisboa, Porto e Coimbra, mas também nas cidades e vilas mais distantes e, por conseguinte, mais ignorantes do fenómeno politico o social que era ou poderia vir a ser uma revolução de caraterísticas liberais.

 Não se restringem, contudo, à missão de educar ou guiar espíritos mais ou menos ignorantes. Estas sociedades, com efeito, passaram a tomar um papel bastante mais ativo quando as ideias liberais passaram a ser atacadas, como em 1823, nas lutas que os absolutistas moveram ao regime saído de 1820 e cuja principal bandeira era a Constituição de 1822, a mais vanguardista das que no século XIX se fizeram em Portugal. Fizeram alistar muitos voluntários que se incorporavam de imediato nas fileiras liberais. Grande parte dos soldados tinha sofrido influência destas sociedades e alguns prémios lhes cabem, como no caso da Ponte de Amarante.

Naquele caso, que insurrecionou a maior parte de Trás-os-Montes, teve papel relevante a “Sociedade Literária Patriótica Portuense“, na qual se destacavam, entre outros, os estudantes de Coimbra e depois homens de vulto do Liberalismo em Portugal, os irmãos Manuel e José Passos, o primeiro dos quais chefe de governo durante o Setembrismo, com o nome de Passos Manuel.

 As grandes datas revolucionárias eram festejadas em todo o País e a consciência popular despertada através da ação destas sociedades. Foram, pode-se dizer, uma das forças impulsionadoras da opinião pública.

 Quando constava algum feito heroico praticado por qualquer cidadão em defesa da liberdade, as sociedades patrióticas corriam logo a saudá-lo e a cobri-lo de louvores.

Mas voltemos ao caso particular do Gabinete de Leitura de Loulé. É evidente que não foi fundado no âmago do puro revolucionarismo de 1820 e anos subsequentes. Até 1835, embora não mediassem muitos anos, muita coisa tinha acontecido. Foi até um dos períodos mais conturbados da nossa história pátria. E nem Loulé, embora sendo uma destacada povoação do Algarve, estaria em condições infraestruturais para poder ter uma sociedade em atividade ao nível das de Lisboa ou Porto. Limitava-se, evidentemente, ao que de bom existia no Algarve, região distante de Lisboa, à qual a má qualidade das vias de comunicação emprestava uma ideia de maior distância do que a que realmente existia.

 A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé, em que tomavam assento, como já dissemos, os homens mais ilustrados da vila, tinha como finalidades explícitas “espalhar as luze” e a “instrução”. Efetivamente, embora de uma forma mais atenuada, encontram-se aqui as ideias-força que transcrevemos da sociedade lisbonense. “Espalhar as luzes” era levar os ideais iluministas (filosóficos e políticos) a camadas que dificilmente os poderiam atingir. “Instruir” logicamente queria levar o mínimo de conhecimentos, de aprendizagem dos factos mais correntes, aos mais desfavorecidos neste campo.

 Esta ideia de desenvolvimento cultural da terra estava inserida, com efeito, no próprio timbre da sociedade, da autoria do já referido Padre José Rafael Pinto:

 “Um círculo dentro do qual em duas figuras retilíneas se veja em uma as Armas da vila, e da outra um livro com uma pena e que no lugar que se julgar mais apropriado se leia 29 de dezembro de 1835 – e bem assim – Gabinete de Leitura de Loulé.”

 Esclareça-se que a data apresentada — 29 de dezembro de 1835 – é a data da instalação da sociedade, cuja primeira residência se desconhece. Sabe-se, no entanto, que teria aí residido até 31 de dezembro de 1836 – um ano depois, data que passou para a casa da Misericórdia, onde fora a antiga Câmara.

 Aquele timbre foi apresentado na sessão de 2 de junho de 1837 e mandado fazer em 30 do mesmo mês em Lisboa, presumindo-se que no Algarve não existiriam casas da especialidade.

Todos os anos, especialmente naqueles estava em efetiva atividade (e que nem sempre aconteceu até 1848) se comemorava solenemente com discursos e sessões públicas o dia da sua instalação.

Deixou-se entender há pouco que o gabinete teve períodos de relativa sonolência, e outros de franca atividade.

Entre os de intensa atividade citam-se os anos seguintes à sua formação, isto é, de 1836 até ao verão de 1840; o princípio dos anos 1841 e 1842. Em contrapartida os segundos semestres destes anos e, bem assim, como os anos de 1843, 45, 46 e 47 não são registados no livro de Atas da Sociedade, que serve de base ao presente trabalho. No entanto, aparecem atas separadas por várias folhas em branco. Seria o devido lugar para as atas das sessões havidas e que por qualquer motivo não foram redigidas? De qualquer modo, não nos parece muito verosímil tal asserção, uma vez que no início de cada sessão se procedia à leitura e aprovação da ata da sessão precedente. Talvez a razão estivesse na clara demarcação dos vários anos, dando a ideia real de que houvera um largo período de tempo em que a sociedade não reunira ou estivera em menor atividade.

 Cabe aqui dizer novamente que se desconhecem os estatutos precisos deste gabinete que, no entanto, os elaborou e aprovou logo na primeira sessão posterior à sua instalação – na sessão de 13 de janeiro de 1836. Sabe-se explicitamente que a assembleia deveria reunir todos os meses, ao fim da tarde do último dia de cada mês, o qual, se fosse domingo ou feriado, deveria fazer antecipar a reunião para o dia anterior.

Uma possível descoberta dos citados estatutos muito viria aclarar toda a forma de processamento da dita sociedade, limitando-nos assim nós a reunir aquilo que separadamente se recolhe nas atas das diversas sessões que formam ao todo, entre 1835 e 1848, cento e treze, entre ordinárias e extraordinárias.

Quanto ao ano da sua extinção como sociedade, também não se sabe ao certo. Temos apresentado o ano de 1848 como sendo o último, baseando-nos no facto, já devidamente ressalvado, de a última sessão, cuja ata se encontra no respetivo livro, ser a de 20 de fevereiro de 1848.

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26 – A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé (1835-48?)

Introdução

Mudando de temas e principalmente de tempo histórico, nos próximos artigos iremos aqui apresentar, em meia dúzia de parcelas, um pequeno trabalho que resulta da investigação que teve por base uma obra existente no arquivo da Câmara Municipal de Loulé – “Actas da Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé”, ou, mais simplesmente “Actas da Sociedade de Leitura”. Foi realizado em 1978 e era nessa ocasião um trabalho académico para a Licenciatura em História pela Faculdade de Letras de Lisboa.

Como o próprio título indica, trata-se do livro de atas das sessões da Sociedade. É manuscrito, todavia sem grande dificuldade de leitura, embora a letra de alguns secretários seja mais difícil de decifrar do que o normal.

Infelizmente o livro não está complementado com os Estatutos da Sociedade, que de vez em quando são referidos e que existiam na sede da coletividade. Se tal acontecesse, muitas coisas mais se poderiam compreender e explicar-se-iam outras pelas entrelinhas do que foi ficando registado em ata. Aqui cabe referir que as atas não são geralmente muito extensas, nem referem os acontecimentos no seu pormenor, antes se ficando por uma espécie de matéria sumariada. Apesar de tudo, conseguimos realizar o nosso trabalho, com maior ou menor dificuldade, com maior ou menor mérito – isso se verá pela sua leitura.

Supomos ter contribuído para aclarar alguns aspetos (pelo menos bairristas, relacionados com a vida cultural de Loulé nos tempos de antanho, e que nos parecem ser do conhecimento de poucos). Aliás, ficamos com vontade de um dia tarde voltar ao assunto com mais vagar.

Quanto ao aspeto ideológico e político talvez seja também uma achega para o conhecimento do processus evolutivo do Liberalismo nas regiões do interior do país e mais distantes dos grandes centros urbanos.

Parecendo-nos que é importante o seu conhecimento, divulgamos novamente neste blog, depois de, numa versão mais sintética já ter sido publicado nas Atas do I Congresso do Concelho de Loulé – Abril.1999 – pág. 7-15.

 Posta esta breve introdução, iremos então colocar os vários artigos.

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25C -Em Quarteira, ou na Quarteira?

No último post que aqui deixei sobre a viagem do rei D. Sebastião, assinalei um pormenor de linguística que achei curioso porque já tenho pensado sobre este tema: o cronista escreveu que “ouviu El-Rei missa na Albufeira; (…) Veio El-Rei pela Quarteira”.

Trata-se da velha questão de haver topónimos (nomes de lugares/povoações) que são conjugados simplesmente com a preposição ‘em’ e outros com a contração da preposição e o artigo definido ‘o/a’. No caso vertente, as duas localidades na crónica foram designadas como a Albufeira e a Quarteira, o que atualmente se não usa no que se refere a Albufeira. Mas em relação a Quarteira, subsiste a dúvida: enquanto os algarvios dizem sempre “em Quarteira”, os turistas do norte do país dizem habitualmente que estão de férias “na Quarteira”. O que tem levantado algumas curiosas reações, nomeadamente nas redes sociais.

Eu não sou linguista, nem tenho pretensões a tal. Portanto corro aqui o risco de ser interpelado como foi o sapateiro por Apeles (“não vá o sapateiro além da chinela”). Mas interesso-me um pouco pela etimologia (origem das palavras), talvez porque no meu percurso escolar me entretive alguns anos com o Latim e o Grego. Mas nem isso aqui me ajuda, porquanto o Latim clássico, que forma o substrato da língua portuguesa não usa(va) o artigo definido.

Já em diversas vezes tenho perguntado qual é a regra gramatical que responde à questão que ponho, a pessoas que disto sabem mais do que eu, mas até agora nunca obtive uma resposta totalmente satisfatória.

Do que tenho pensado e ouvido, formulei uma hipótese que, não é geral, muito longe disso, mas que abrange muitos topónimos:

– Quando o topónimo corresponde a um nome comum, geralmente aplica-se a contração da preposição com o artigo definido. Alguns exemplos: no Porto; na Figueira; nas Alcáçovas; na Sertã; na Régua; na Beira; no Fundão; na Guarda; no Cais do Sodré; na Costa da Caparica; no Areeiro; no Ameixial; etc.;

– Quando não corresponde a um nome de uma coisa concreta, utiliza-se somente a preposição, o que me parece ser a forma mais comum. Alguns exemplos: em Lisboa; em Loulé; em Portimão; em Coimbra; em Braga; em Beja; em Évora; em Viseu; em Molelos; em Viana; em Tavira; etc.

O problema é que há imensas exceções em ambos os casos e, portanto, isto não pode ser uma regra geral. Alguns exemplos contra um e outro:

  • em Lagoa; em Faro; em Lagos; em Albufeira; em Chaves; em Barrancos; em Castelo Branco; em Manteigas; em Espinho; em Pombal; em Angra; em Armação; em Pera; etc.
  • no Alportel; no Montijo; na Raposeira; na Covilhã; no Cercal; no Crato; na Goncinha; na Tor; na Foia; etc. etc.

Portanto, esta é apenas uma hipótese de regra que não satisfaz completamente as necessidades. Mas também se costuma dizer que não há regra sem exceção (desde que as exceções não sejam tantas quanto a regra…).

Quanto ao caso concreto de Quarteira, as referências históricas mais antigas, da era cristã, identificam o topónimo de uma forma indefinida:

– O Foral de Loulé, dado por D. Afonso III, em 1266, de que só se conhece (na Torre do Tombo) uma cópia manuscrita dos séculos seguintes (XIV ou XV), num tempo em que os documentos oficiais ainda eram em Latim (tardio), refere-se a Quarteira por duas vezes mas, em ambos os casos, a palavra Quarteira é identificada já à portuguesa, antecedida da preposição de (indicando posse, pertença), e não declinada à maneira latina (no caso seria no genitivo), do seguinte modo:

“(…) Item retineo mihi et omnibus successoribus meis omnia molendina de Quarteyra constructa et construenda. (…) Et similiter retineo omnes hereditates de Quarteyra pro meo regalengo”. [Tradução quase desnecessária: “Igualmente retenho para mim e todos os meus sucessores todos os moinhos de Quarteira construídos e a construir. (…) E igualmente retenho para mim todas as herdades de Quarteira para meu reguengo”].

– Cerca de trinta anos depois, na carta de povoamento de Quarteira, já em Português arcaico, que o rei D. Dinis, em 1297, faz a Martim Mecham, diz-se que este “veo a mim e pediu que eu lhy desse o meu logar que chamam quarteira com todos seus termhos per a ssi e pera cinquoenta pobradores omeõs” [povoadores homens].

– No século XVII temos também a descrição de Alessandro Massaii, o famoso arquiteto  e engenheiro militar napolitano que, ao serviço da Coroa filipina redigiu a sua “Descripção do Reino do Algarve…“, de um levantamento, que fez em 1617/18, das condições militares das povoações algarvias, e em que se pode ler:

“Relação da villa de Loulé

Está situada em sitio alto, e bem acastelada e sercada  de muros (…) Dista do mar legoa e meia e na fronte della, na sua costa está hua armassão de atuns que se diz o zimbral que della tratei nas descripção de faro tem hua boa légua de praia que nella se pode facilmente embarcar e desembarcar a pé enxuto, e ficarem as embarcações a vado por onde a sobredita praia está muito sujeita a hum assalto ou bateria de mão, estando mais que na sobredita praia que se diz de quarteira não há mais do que hua torre que se diz almenara (…)”

– No meio destas três citações, está assim o texto discordante do citado cronista João Cascão (de quem pouco ou quase nada se sabe sobre a sua pessoa, ou naturalidade, segundo o Prof. Francisco de Sales Loureiro), que em 1573 utilizou, como vimos, as expressões “na Albufeira” e “pela Quarteira”. Ele era o cronista do Infante D. Duarte, que era neto do Rei D. Manuel e primo de D. Sebastião, portanto um homem próximo da Corte, e muito provavelmente não era algarvio. Não conheço mais nenhum documento antigo que se refira a Quarteira desta forma.

Em síntese, os documentos históricos são maioritariamente para o lado do em Quarteira. Embora não de uma forma absoluta e inequívoca, avalizam o modo atual dos algarvios se referirem àquela cidade.

Ligando à minha hipótese acima apresentada, precisaria de saber qual a origem da palavra Quarteira: se está ligada ao nome da mítica povoação de Carteia, ou apenas a uma realidade mais comum em que quarteira de algum modo se relaciona com um qualquer “quarteiro”, como antigamente se designava a quarta parte de um moio (medida de cereais correspondente a quinze alqueires), ou um tributo pago nessa quantidade, e assim leve alguns, por aproximação, a achar que podem dizer “a Quarteira”.

Assim, no momento atual penso que a utilização da forma algarvia de expressão baseia-se na tradição histórica e oral, e a das pessoas do Norte numa forma que eu designaria de facilitação linguística, talvez por a palavra Quarteira parecer referir-se a uma coisa concreta e próxima, sem ter em conta a tradição local. Ora eu penso que nestes casos deveria prevalecer o uso local e regional, que aqui é consensual entre todos os algarvios. Porque são eles que diariamente utilizam a palavra e porque isso corresponde a uma tradição histórica. Como diz o povo “cada roca com seu fuso, cada povo com seu uso”.

Fica aqui uma reflexão para quem poder e quiser ocupar-se um pouco com estas coisas. Se alguém tiver mais certezas, pois eu continuo interessado em saber.  

    

25B – Passagem do Rei D. Sebastião pelo Morgado de Quarteira e Loulé – 1573

Para concluir a abordagem à viagem de D. Sebastião pelo Alentejo e Algarve, em 1573, apresentamos hoje a parte que respeita a Quarteira e Loulé.

Quase três semanas depois de ter estado em Almodôvar, seguindo por Ourique, Messejana, Colos, Odemira, Odeceixe, Aljezur, Lagos, Sagres, Alvor, V. N. Portimão, Monchique, Silves, Alcantarilha e Albufeira, o Rei D. Sebastião chegou ao termo (concelho) de Loulé, passando por Quarteira, antes de entrar na Vila. Em todas estas terras foi calorosamente recebido, principalmente em Lagos, talvez com exceção de Silves, cuja Câmara não terá gostado que D. Sebastião tivesse elevado Monchique (que pertencia ao seu termo) à categoria de vila.

A viagem pelo concelho de Loulé é conhecida do grande público, porquanto a alcaidaria do castelo de Loulé desde há algumas décadas que ostenta uma lápide a assinalar o feito, e a Estalagem da Cegonha – Vilamoura refere também no seu site promocional a passagem do rei pelas instalações do que era então o solar do Morgado de Quarteira.

Este morgado tinha sido criado em 1413, com D. João I, o qual cedeu a herdade que pertencia à Coroa desde o foral de Loulé (1266) a Gonçalo Nunes Barreto, por troca com um senhorio que este tinha em Cernache – Coimbra (então chamado Cernache dos Alhos, não confundir com Cernache do Bonjardim – Sertã).

Na data desta visita era senhor do Morgado de Quarteira Rui Barreto, penso que Rui Nunes Barreto, de seu nome mais completo, e que seria o 7º titular do morgado. Desempenhava também as funções de Alcaide-Mor de Faro. Ali foi a comitiva recebida com um lanche, uma pequena corrida de touros e uma rápida montaria.

Sobre a estadia em Loulé destacam-se a presença da comitiva na alcaidaria do castelo, as danças da receção em sua honra, a beleza das raparigas, a descrição das ruas da vila, e ainda uma visita ao mosteiro/ convento de Santo António (de frades franciscanos da Província da Piedade, o primeiro, mais abaixo do que o atual, que teria sido fundado em meados do séc. XVI por Nuno Rodrigues Barreto e D. Leonor de Milão, pais da camoniana D. Francisca de Aragão, e habitado até 1692, quando os frades passaram para o segundo), para além do facto de não ter havido corrida de touros, porque a comitiva sairia logo no dia seguinte, pela manhã. Curiosa é ainda a frase “veio El-Rei pela Quarteira” que, presumindo que foi bem transcrita do original que se desconhece, seria um dos primeiros registos escritos de fazer anteceder o topónimo pelo artigo definido (“pel’a ou n’a Quarteira”). Tal como na referência ao rei ouvir missa “na Albufeira”.

Transcreve-se assim a passagem pela Quinta de Quarteira e por Loulé, na descrição do cronista João Cascão, publicada por Francisco de Sales Loureiro em “Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve” – Livros Horizonte – 1984 – pág. 111/112, em grafia atualizada e com as minhas notas entre parêntesis retos:

“5ª feira, 29 de janeiro [de 1573], ouviu El-Rei missa na Albufeira; almoçou [pequeno-almoço] e partiu às 9 horas para Loulé, que são três léguas de jornada. Veio El-Rei pela Quarteira, quinta [morgado de Quarteira – atual Vilamoura] de Rui Barreto, apeou-se nas casas da quinta e no pátio correram-lhe umas vaquinhas e um touro.

Esteve-os vendo de uma janela, e mandou deitar o Couto [o cortesão Zuzarte do Couto] no curro; mandou-lhe fechar as portas, por que não tivesse onde se recolher, e de medo esmoreceu. El-Rei mandou-o então tirar do curro. El-Rei comeu algumas coisas doces sobre que bebeu, e um criado de Rui Barreto andou pelos fidalgos, dando marmelada e púcaros de água, e à gente miúda se deu todo o vinho que quiseram beber. Gastar-se-ia nisto hora e meia; chegou o Senhor D. Duarte [o Duque de Guimarães] por vir um pedaço atrás de El-Rei, já no cabo dos touros. Pôs-se El-Rei a cavalo e foi montear uns porcos, que lhe tinham emprazados; fez-se a armada ao redor dum paul, e à batida saíram três porcos e alguns veados. Correu El-Rei e Rui Barreto a um porco; Rui Barreto o errou duas vezes e El-Rei lhe deu duas lançadas grandes de que o matou. E o Duque de Aveiro e o Conde da Vidigueira saíram a outro que mataram, e o terceiro deixaram ir por ser muito pequeno. Acabado o monte [montaria], foi El-Rei ver as éguas da quinta, que dizem que passam de 50. Vistas, pôs-se a caminho de Loulé, meia légua do qual o veio receber o juiz, com perto de 100 de cavalo com sua bandeira, lanças e adargas, e três bandeiras da Ordenança [forças militares territoriais], que fizeram a salva de arcabuzia [de arcabuz – espingarda da época].

Mais perto da vila, receberam-no com uma dança de homens, e outra de mulatas, que dançavam em extremo, e cantavam a seu modo muito arrazoadamente. Acompanhado de tudo acima dito, até à porta do castelo por onde entrou, e nela o receberam os Vereadores. Dizem que o Vereador mais velho estava para lhe dizer algumas coisas a modo de fala, e passou El-Rei tão depressa, que não houve comodidade para conseguir seu desejo. El-Rei recolheu-se nesta ordem para as casas do Alcaide-Mor, que são no castelo.

O Senhor D. Duarte, depois de deixá-lo nelas, foi ver o castelo e a fortaleza da Vila, a qual, entrando El-Rei, fez salva da artilharia. E foi também ver fora da Vila um mosteirinho de Capuchos da advocação de Santo António [seria o primeiro convento de Santo António, um pouco mais abaixo do atual, que viria a ser abandonado em 1692, quando estava muito destruído]. Recolhido o Senhor D. Duarte a sua casa, vieram beijar-lhe as mãos os Vereadores. E as mulatas vieram à noite cantar à porta, e o Senhor D. Duarte lhes fez mercê; e mandou visitar a mulher de Gonçalo Nunes Barreto. Terá esta Vila 700 até 800 vizinhos [casas de família]. É muito bem assombrada, e com muito formosas ruas. A, por onde El-Rei entrou, estava arrazoadamente aparamentada, e com algumas moças muito bonitas pelas janelas, que não haviam inveja às de Vila Nova [de Portimão]. Estava esta Vila muito bem provida de mantimentos e tinham touros para correr a El-Rei, se quisera estar ao segundo dia.

A Alcaidaria-Mor desta Vila é do Senhor D. Duarte e fez mercê dela a Gonçalo Nunes Barreto, [da mesma família de Rui Barreto] que é o Alcaide-Mor.

6ª feira, 30 de janeiro, entre as 6 e as 7, foi El-Rei ver o Mosteirinho de Santo António, e o Senhor D. Duarte com ele, o Duque de Aveiro e os fidalgos. Às 7 horas dadas, partiu para a cidade de Faro, duas léguas de jornada.”

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25A – Passagem do Rei D. Sebastião por Almodôvar – 1573

Conforme indiquei, irei começar pela passagem do Rei D. Sebastião por Almodôvar, em janeiro de 1573.

Como introdução devo referir que D. Sebastião nesta data ainda tinha 18 anos (faria 19 anos alguns dias mais tarde, durante esta viagem, precisamente no dia que chegou a Lagos – 20 de janeiro), vila importante que ele viria a elevar à categoria de cidade e que, em conjunto com os outros lugares henriquinos, viria a ser um lugar muito especial para si, sendo a recíproca também verdadeira, simbolicamente representada na icónica estátua de João Cutileiro.

O Senhor D. Duarte, como é tratado na crónica, era o Infante D. Duarte, 5º Duque de Guimarães e primo do Rei, porque era sobrinho do seu avô D. João III, sendo então o Condestável do Reino, com 32 anos de idade, e de quem João Cascão era cronista pessoal.

Na comitiva, como era normal, vinham diversas figuras gradas da Corte, tais como: o Duque de Aveiro, os Condes da Vidigueira, do Vimioso e de Sortelha; altos funcionários: Alferes-Mor; Almotacé-Mor; Estribeiro-Mor; Reposteiro-Mor; Corregedores da Corte; Secretários de Estado; Vedores; Capelão- Mor; para além de vários cortesãos e moços fidalgos.

Do texto destaco, em sumário, o temporal na viagem entre Castro Verde e Almodôvar; as dificuldades logísticas do alojamento em Almodôvar, em casas mal isoladas para a chuva, depois de um dia de temporal, com a curiosa expressão “mal em campo, pior em vila”; o pormenor da subida especulativa do preço do sabão na oportunidade, resolvido pelo Almotacé-Mor (o magistrado da Corte que tratava dos abastecimentos, preços, taxas e impostos); e a habitual corrida de touros com que a comitiva era geralmente brindada em cada localidade visitada. De resto, não farei mais comentários, porque o texto é bastante percetível.

Passo então a citar a descrição do cronista João Cascão, publicada por Francisco de Sales Loureiro, em “Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve” – Livros Horizonte – 1984 – pág. 87/89, em grafia atualizada, com algumas notas de esclarecimento da minha autoria, entre parêntesis:

(…) “5ª feira, 8 de janeiro [de 1573], depois de El-Rei [D. Sebastião] ouvir missa pela manhã cedo, e almoçar [pequeno–almoço, em Castro Verde], partiu para Almodôvar. São três léguas de jornada, e foi o pior dia de chuva e o pior caminho de lama e atoleiros, que podia ser; não faltou muito grande vento e não faltaram duas muito grandes ribeiras e uma delas de tamanha corrente que parecia querer levar os homens e as bestas. Em cada uma destas fazia El-Rei e o Senhor D. Duarte aos de cavalo que pusessem às ancas os de pé; houve muitas bestas caídas em atoleiros, e outras nas ribeiras. E um moço da guarda-roupa de El-Rei, por nome Manuel da Fonseca, caiu na pior ribeira, sendo El-Rei presente. E correu muito trabalho um grande pedaço que esteve na água, ele e o cavalo sem se poderem erguer, e alguns de cavalo se deitaram à ribeira a lhe acudir e El-Rei o cometeu, também prouve a Deus que saiu, mas mal enxuto.

A guarda-roupa do Senhor D. Duarte passou muito trabalho e foi todo de Manuel de Amaral, e de Luís Veloso, aos quais caíram as azémolas quatro vezes. E eles, metidos na lama até aos joelhos, com elas, carregavam as caixas às costas e estando neste naufrágio passou o Conde do Vimioso e disse, compadecido de os ver em tal tormenta, que tomara ver ao Senhor D. Duarte um par de boas Comendas, que dera a cada um sua, por tamanho trabalho.

Mas, ainda os louvara mais, se adivinhara que o seu fato lhe ficara aquela noite na charneca e se havia de ver como outros sem ele, a que não chegou aquela noite. E os lobos saltaram com as bestas de maneira que, até pela manhã, não puderam seus donos dar com elas nem carregar o fato.

Meia légua antes de chegar El-Rei, com aquela grande tormenta, o vieram receber o Juiz, Vereadores, e alguma mais gente de cavalo, e lhe trouxeram um veado o qual lhe disseram que era muito bravo, e tinha esperado por ele um grande pedaço à chuva.

El-Rei o quis ver correr aos da terra, e por mais recontradas que lhe deram, não se quis bulir.

Veio Sua Alteza se recolhendo ao lugar; à entrada dele a desordenança muito molhada e muito sem sabor; e entrando no lugar depois e fazer oração na igreja, como costumava em todas, foi para as suas casas, às quais o Senhor D. Duarte, e as dos mais, eram tais e tão chuvosas que se pudera por elas dizer ou por eles: mal em campo, pior em Vila.

No aposento do Senhor D. Duarte não tão somente não havia casa em que não chovesse, mas não havia coisa enxuta nelas, e houve votos de se fazer a cama do Senhor D. Duarte numa loja grande das casas, porque além de chover na câmara estava muito danificada, e os que o notaram foi D. Diogo de Lima, e pedro de Andrade, mas o Senhor D. Duarte não consentiu. Neste lugar e em outros, por onde El-Rei passava, se punham muitas pessoas de joelhos e levantavam as mãos como que faziam, oração, e algumas mulheres havia que batiam nos peitos. Também se vendeu neste lugar o sabão em casa de um Cristão-novo, e passando um homem da Corte com um pouco lhe comprara, na mão, pela porta do Almotacé-Mor, ele lhe perguntou o que justara, o homem respondeu que quinze reais, e era para se poder lavar uma camisa. E o Almotacé-Mor fez experiência com pesos a quanto chegava o arrátel daquela maneira, e achou que passava de 9 vinténs e castigou o homem muito bem.

Pus aqui isto para se verem os trabalhos e necessidades que pelo caminho se passam que até lavar uma camisa custa tanto trabalho, também posso por que por almotaçaria se mandava consertar o calçado.

6ª feira, 9 de janeiro [de 1573], esteve El-Rei em Almodôvar e pela manhã ouviu missa, e o Senhor D. Duarte e o Duque [de Aveiro] com ele. Acabando El-Rei de jantar [atualmente seria almoçar] se pôs a cavalo com o Duque e foi ao campo. Lá esteve pouco por ter aqueles dias touros, aos quais andou e o Senhor D. Duarte, e o Duque [de Aveiro] e o Conde do Vimioso.

Houve algumas sortes boas a cavalo, e se não houvera medo lançarem-me por suspeito, dissera quão bem o Senhor D. Duarte andou, e se me deram o juramento dos Santos Evangelhos, dissera que não podia outrem andar melhor, nem mais gentil-homem, e não faltaram muitos que nesta matéria sustentem minha verdadeira opinião, e em todos muito certa. El-Rei acudiu maravilhosamente e com muito fervor a um moço da Estribeira seu, que tomou o touro, e lho tirou das mãos, e ficou disto muito contente, e lançou o cavalo. Depois de gastar El-Rei neste exercício um grande pedaço, se recolheu a sua casa com o Senhor D. Duarte e o Duque de Aveiro e o Conde do Vimioso, e mandou sair novos touros para outros toureiros, os quais são os seguintes:

O Alferes-Mor e D. Rodrigo Lobo em cavalos do Duque de Aveiro e Luís Álvares de Távora, o moço, em um seu. Deram em touros tão mansos que não se ofereceu fazerem alguma sorte, mais do que uma em que o Alferes-Mor perdeu o barrete e El-Rei se desenfadou.

Sábado, 10 de janeiro, ouviu El-Rei missa, muito antemanhã. Antes de romper a alva, partiu da forma costumada e veio jantar [almoçar] a Ourique.”(…)

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25 – Viagem de D. Sebastião ao Alentejo e Algarve – 1573

Os próximos posts serão dedicados a uma célebre viagem que o Rei D. Sebastião fez pelo Alentejo e Algarve em 1573, cinco anos antes da fatídica viagem de Alcácer –Quibir.

O périplo está devidamente relatado numa crónica de João Cascão (cronista régio que acompanhou a viagem) e foi publicada por Francisco de Sales Loureiro com “Uma jornada ao Alentejo e ao Algarve” editada pelos Livros Horizonte – 1984.

A viagem realizou-se entre janeiro e fevereiro de 1573, tendo-se iniciado em Évora e passado por Viana do Alentejo, Cuba, Beja, Entradas, Castro Verde, S. Pedro das Cabeças, Almodôvar, Ourique, Messejana, Colos, Odemira, Odeceixe, Aljezur, Lagos, Sagres, Alvor, Portimão, Monchique, Silves, Albufeira, Quarteira, Loulé, Faro, Tavira, Cacela, Castro Marim, Aiamonte, Alcoutim, Mértola, Serpa, Moura, Mourão, Cheles, Olivença, Elvas, Vila Viçosa, Estremoz e tendo-se concluído novamente em Évora.

O cronista dá-nos um relato com algum pormenor sobre a viagem e estadia do séquito real em cada uma das localidades assinaladas, que será de alguma curiosidade para os seus naturais.

Não vou, evidentemente, aqui transcrever toda a obra, mas tão somente as passagens por Almodôvar, morgado de Quarteira e Loulé.

Por outro lado, irei repetir as publicações que já fiz no FaceBook, pelo que peço aos meus ‘amigos’ que tenham isso em conta.

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