35 – Os titulares de Loulé ao longo da História

Ao longo da maior parte da sua história, Loulé pertenceu ao território da Coroa, reportando as suas autoridades locais (administrativas, militares ou judiciais) diretamente à pessoa do Rei de Portugal, desde a outorga do seu primeiro Foral, em 1266. Esta era a fórmula politico-administrativa mais desejada pelas populações de todo o país, por não terem que depender de senhores mais ou menos poderosos, que cortavam a relação Rei-Povo que os concelhos estabeleciam.

No entanto, houve alguns períodos em que a vila, a exemplo de muitas outras por todo o país, foi concedida como senhorio privado a alguns elementos da Nobreza portuguesa, que assim exerciam sobre ela a sua autoridade, e recebiam os seus mais variados rendimentos da época.

Esses períodos foram:

– Entre 1471 e 1534 – com o Condado de Loulé, na posse da família Meneses / Coutinho; e

– Entre 1799 e 1910 – com o Marquesado, depois Ducado de Loulé, que apesar de formalmente extinto com a República, ainda hoje existe nominalmente na família … Mendonça Rolim de Moura Barreto.

De uma forma muito sucinta, apresento a seguir os nomes daqueles que foram titulares de Loulé, nas suas várias formas:

A – Condes de Loulé – 1471-1534

1º – D. Henrique de Meneses (1450-1480), neto de D. Pedro de Meneses, Conde de Vila Real, e filho de D. Diogo de Meneses. Casou com D. Guiomar de Bragança, filha do Duque de Bragança, D. Fernando. Foi alferes-mor de D. Afonso V. Recebeu em 1471 o Condado de Loulé, depois de ceder ao rei o Condado de Valença.

2º – D. Brites ou Beatriz de Meneses (1470-1530) – filha de D. Henrique de Meneses e casou com D. Francisco Coutinho – 4º Conde Marialva.

3º – D. Guiomar Coutinho (? – 1534) – foi Condessa de Loulé por autorização expressa de D. Manuel I – casou com o Infante D. Fernando, Duque da Guarda, que era filho do rei D. Manuel I. Viveram em Abrantes. Não ficaram descendentes na família quando no ano fatídico de 1534, todos os familiares morreram, e o título foi extinto (reinado de D. João III).

B- Marqueses de Loulé – 1799 – 1862

1º – D. Agostinho Domingos José de Mendonça Rolim de Moura Barreto (1780-1824), que era em 1799 o 8º Conde de Vale de Reis. Considerado próximo de D. João VI, e liberal por convicção. Morreu em circunstâncias estranhas, no seu palácio de Salvaterra de Magos.

 2.º – D. Nuno José Severo de Mendonça Rolim de Moura Barreto (1804-1875), 2.º Marquês, 9.º Conde de Vale de Reis. Veio a ser em 1862 o 1º Duque de Loulé (como veremos a seguir).

C- Duques de Loulé – 1862 –

1º – D. Nuno José Severo de Mendonça Rolim de Moura Barreto (1804-1875) (o anteriormente citado 2º Marquês), militar e político que veio a receber em 1862, do rei D. Luís, o título de Duque de Loulé; casado com D. Ana de Jesus Maria de Bragança, a filha mais nova de do rei D. João VI e, por isso, titulada de Infanta de Portugal. Foi uma das grandes figuras do Liberalismo do século XIX em Portugal – Deputado, Par do Reino, e líder do Partido Histórico, fundado em 1952, que alternou no poder com os Regeneradores no 3º quartel do século. A ele se refere o nome da Avenida Duque de Loulé, em Lisboa. É considerado o último Morgado de Quarteira.

2.º – D. Pedro José Agostinho de Mendoça Rolim de Moura Barreto (1830-1909), também 10.º Conde de Vale de Reis; casado com D. Constança Maria de Figueiredo Cabral da Câmara.

3.º – D. Maria Domingas José de Mendonça Rolim de Moura Barreto (1853-1928), também 11.ª Condessa de Vale de Reis.

No período da República, e consignado na Constituição de 1911 (Título II – Artº 3º – 3º), os títulos nobiliárquicos foram formalmente extintos e abolidos os privilégios e as formas de tratamento especial. No entanto continuaram a existir nas famílias que já os possuíam, mas sempre numa situação de igualdade perante a lei do Estado.

4º – D. Constança Maria da Conceição Berquó de Mendonça Rolim de Moura Barreto (1889-1967), também 12.ª Condessa de Vale de Reis.

5º – D. Alberto Nuno Carlos Rita Folque de Mendonça Rolim de Moura Barreto (1923-2003), também 13.º Conde de Vale de Reis.

6º – D. Pedro José Folque de Mendonça Rolim de Moura Barreto (1958 –       ) – também 14.º Conde de Vale de Reis. Este é o atual representante desta casa ducal, que se afigura como a segunda em importância simbólica no país, a seguir à Casa de Bragança.

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34 – As Torres de Vigia e Fortificações Militares do Sotavento Algarvio

A exposição marítima do litoral algarvio aos contactos com o mundo mediterrânico e o norte de África foram, desde a Antiguidade, muito importantes para a vida económica e cultural da região. O mar era mesmo a principal via de contacto do Algarve com o exterior, incluindo com o centro e norte do país, até ao séc. XIX. Mas também havia o lado negativo dessa mesma exposição: a concretização de frequentes assaltos da pirataria moura aos campos e localidades litorais algarvios, com a respetiva pilhagem de produtos locais e, pior que isso, com o rapto de pessoas encontradas, o qual dava origem frequentemente a um posterior resgate.

Ao longo da Idade Média e Moderna, esses assaltos eram tão frequentes que ficaram no imaginário das populações, com as suas lendas (ex: Lenda da Moura Cássima), expressões populares (ex: “Há mouro na costa”), e receios coletivos que perduraram até aos nossos dias.

Para fazer face a este problema, o poder político e militar da região, em complemento com as edificações e forças militares das praças existentes, investiu na construção de torres de vigia e fortificações na costa, que pudessem dar o alerta da chegada de piratas mouros (marroquinos ou argelinos), e consequentemente dar a resposta adequada para os combater e expulsar. No caso das torres de vigia (ou de vela, como eram popularmente designadas), sempre que eram avistadas embarcações suspeitas na costa, os vigilantes podiam comunicar por sinais de fumo com as guarnições terrestres, e assim se iniciava o combate aos intrusos.

Considerando nesta apresentação apenas a zona do sotavento algarvio, de Faro até ao Guadiana, eram várias as construções deste tipo que existiam, e que ainda se podem ver na sua maioria, apesar de algumas estarem mal conservados, nomeadamente as pequenas torres de vigia. A seguir faremos a sua breve descrição, com base no nosso conhecimento pessoal, e nas publicações identificadas nas Notas Bibliográficas.

Em Faro, a área da cidade velha era ela própria um elemento de defesa contra a chegada de qualquer tipo de inimigos, incluindo de piratas. A linha de muralhas bem junto à água da ria cumpria bem esse papel, evoluindo ao longo do tempo e adaptando-se às novas armas, nomeadamente à artilharia na Idade Moderna. Mais acima, na zona mais alta de Faro, erigiu-se uma torre de vigia em 1355, no tempo de D. Afonso IV – a torre de Santo António do Alto – que igualmente tinha funções de avistamento e controlo da navegação que entrasse na ria, em complementaridade com a linha de muralhas, em baixo.

Mais para leste, na zona de Marim, território desde cedo relevante em termos económicos, e que o rei D. Afonso III reclamou para si no foral de Faro (1266), foi erigida uma outra torre, conhecida como Torre de Marim, de maiores proporções, no reinado do seu filho e sucessor D. Dinis, que segue o modelo de outras torres militares existentes no país, desse período. Terá sido construída a partir de 1282, nos terrenos da Quinta de Marim, que ao longo dos tempos foi sendo concedida por aforamento régio a várias personalidades conhecidas do Algarve, onde se incluem: Pedro Tomás; Afonso Pestana; Gomes Lourenço do Avelar, alcaide de Tavira; João Garcia; o almirante Lançarote Pessanha; Rui Valente. Depois foi vendida em 1554 a Francisco Gil do Lugo, fidalgo (…). Mais tarde, após o terramoto de 1755, com a torre bastante danificada, foi parcialmente demolida pelo seu proprietário de então, João Carlos Miranda Horta Machado, ficando com o aspeto que tem hoje. No século XX surge-nos na posse do Dr. João Lúcio Pousão Pereira e seus descendentes1.

Um pouco mais para leste, surge-nos uma outra torre, de menores dimensões, circular, apenas com a função de vigia sobre a barra da Fuseta – a Torre de Bias. Tem o formato do corpo de um moinho de vento, e hoje está em ruínas, mas é facilmente reconhecível. Na mesma zona há registos de outros nomes de torres de atalaia: Alfanxia, Quatrim, Amoreira, Torrejão.

Mais adiante, também debruçada sobre a ria Formosa, no sítio do Pinheiro, na projeção da Luz de Tavira, vamos encontrar outra torre do mesmo tipo e função – a Torre d’Aires (ou de Aires Gonçalves).

Já na zona da cidade de Tavira, para além da própria muralha e castelo da cidade, procurada por muitas embarcações para fins comerciais e de abastecimento de água potável, há registo de várias torres de defesa – a Torre do Mar, junto à entrada sul da ponte, e outras torres-atalaia – a Atalaia-Grande e a Atalaia-pequena; e a torre de “Nuno Pereira”. Mais assinalável e mais perto da Ria Formosa, encontramos os vestígios de um forte de cinco baluartes que se começou a construir no tempo de D. Sebastião (1557-1578) – o forte de Santo António ou do Rato.  A descrição que dele deixa Alexandre Massay em 1617, apresenta-o com cinco baluartes, três virados para o mar e dois para terra, dos quais hoje só se podem confirmar os três do lado do mar. A finalidade da sua construção – a luta contra a pirataria moura – não foi efetiva durante muito tempo, porquanto as constantes mudanças da linha costeira provocaram a mudança da barra de Tavira mais para leste, e tornaram obsoleta esta construção.

Por isso é que em 1670 o príncipe regente D. Pedro (futuro D. Pedro II) mandou construir outra fortaleza, também de grandes dimensões, e com linhas próprias do século XVII, no sítio da Gomeira (nas proximidades da atual povoação das Cabanas de Tavira) – o forte de S. João (Baptista) da Barra de Tavira, ou da Conceição2. Tem uma planta em estrela de quatro pontas, estilo Vauban, onde se situam outros tantos baluartes, que se ligam à praça de armas central. Foi reedificado em 1793, depois desativado em 1897, e é propriedade privada desde 19053.

Do mesmo tipo do de S. João, mas anterior, é o forte de Cacela-a-Velha, construído sobre as antigas muralhas medievais que rodeavam a vila antiga e a sua igreja matriz, preparado já para a guerra de artilharia, e com uma vista soberba sobre a mesma Ria Formosa, no seu troço final mais a leste. O aspeto atual é o resultado de muitas adaptações, com as últimas obras datadas de finais do séc. XVIII (reinado de D. Maria I).

Para finalizar esta breve descrição poderemos ainda destacar o forte de S. Sebastião, em Castro Marim, uma fortaleza de dimensões superiores às restantes aqui apresentadas, e que fazia frente ao inimigo castelhano, mas também à pirataria que ousasse subir o rio Guadiana. Data de meados do séc. XVII (D. João IV), com cinco baluartes numa planta poligonal adaptada ao terreno.

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Notas Bibliográficas:

1   Cf. MARTA, José – “Da Torre de Marim a Olhão-Subsídios para a sua História” – Olhão – 2004.

2   Cf. ANICA, Arnaldo – “Tavira e o seu Termo” – Tavira – 1993

3   Cf. MAGALHÃES, Natércia – “Algarve – Castelos, Cercas e Fortalezas” – Ed. Letras Várias

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33B – Frades e Barões em Almeida Garrett

Almeida Garrett – “Viagens na Minha Terra

CAPÍTULO XIII

Dos frades em geral.

Frades… frades… Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando. No ponto de vista artístico, porém, o frade faz muita falta.

Nas cidades, aquelas figuras graves e sérias com os seus hábitos talares, quase todos pitorescos e alguns elegantes, atravessando as multidões de macacos e bonecas de casaquinha esguia e chapelinho de alcatruz que distinguem a peralvilha raça europeia — cortavam a monotonia do ridículo e davam fisionomia à população.

Nos campos o efeito era ainda muito maior: eles caracterizavam a paisagem, poetizavam a situação mais prosaica de monte ou de vale; e tão necessárias, tão obrigadas figuras eram em muitos desses quadros, que sem elas o painel não é já o mesmo.

Além disso, o convento no povoado e o mosteiro no ermo animavam, amenizavam, davam alma e grandeza a tudo: eles protegiam as árvores, santificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solenidade.

 O que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os substituíram. É muito mais poético o frade que o barão. O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote da sociedade velha. O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova. Menos na graça… Porque o barão é o mais desgracioso e estúpido animal da criação. Sem excetuar a família asinina que se ilustra com individualidades tão distintas como o Ruço do nosso amigo Sancho, o asno da Pucela de Orléans e outros. O barão (Onagrus baronius, de Linn., L’âne baron de Buf.) é uma variedade monstruosa engendrada na burra de Balaão, pela parte essencialmente judaica e usurária da sua natureza, em coito danado com o urso Martinho do Jardim das Plantas, pela parte franchinótica e sordidamente revolucionária do seu carácter.

O barão é, pois, usurariamente revolucionário, e revolucionariamente usurário. Por isso é zebrado de riscas monárquico-democráticas por todo o pêlo. Este é o barão verdadeiro e puro-sangue: o que não tem estes caracteres é espécie diferente, de que aqui se não trata.

Ora, sem sair dos barões e tornando aos frades, eu digo: que nem eles compreenderam o nosso século nem nós os compreendemos a eles… Por isso brigámos muito tempo, afinal vencemos nós, e mandámos os barões a expulsá-los da terra. No que fizemos uma sandice como nunca se fez outra. O barão mordeu no frade, devorou-o… e escoiceou-nos a nós, depois.

 Com que havemos nós agora de matar o barão? Porque este mundo e a sua história é a história do «castelo do Chucherumelo». Aqui está o cão que mordeu no gato, que matou o rato, que roeu a corda, etc., etc.: vai sempre assim seguindo.

Mas o frade não nos compreendeu a nós, por isso morreu, e nós não compreendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de morrer. São a moléstia deste século; são eles, não os jesuítas, a cólera-morbo da sociedade atual, os barões. O nosso amigo Eugénio Sue errou de meio a meio no «Judeu Errante» que precisa ser refeito. Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não compreender, a nós, ao nosso século, às nossas inspirações e aspirações: com o que falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade, uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo lhe não servia nem o servia.

Nós também errámos em não entender o desculpável erro do frade, em lhe não dar outra direção social, e evitar assim os barões, que é muito mais daninho bicho e mais roedor. Porque, desenganem-se, o mundo sempre assim foi e há de ser. Por mais belas teorias que se façam, por mais perfeitas constituições com que se comece, o status in forma-se logo: ou com frades ou com barões ou com pedreiros-livres se vai pouco a pouco organizando uma influência distinta, quando não contrária, às influências manifestas e aparentes do grande corpo social. Esta é a oposição natural do Progresso, o qual tem a sua oposição como todas as coisas sublunares e superlunares; esta corrige saudavelmente, às vezes, e modera a sua velocidade, outras a empece com demasia e abuso: mas, enfim, é uma necessidade.

Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a oposição dos frades que a dos barões. O caso estava no saber conter e aproveitar. O Progresso e a Liberdade perderam, não ganharam. Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades — não dos frades que foram, mas dos frades que podiam ser. E sei que me não enganam poesias; que eu reajo fortemente com uma lógica inflexível contra as ilusões poéticas em se tratando de coisas graves. E sei que me não namoro de paradoxos, nem sou destes espíritos de contradição desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca estão contentes com o que é. Não, senhor: o frade, que é patriota e liberal na Irlanda, na Polónia, no Brasil, podia e devia sê-lo entre nós; e nós ficávamos muito melhor do que estamos com meia dúzia de clérigos de requiem para nos dizer missa; e com duas grosas de barões, não para a tal oposição salutar, mas para exercer toda a influência moral e intelectual da sociedade — porque não há de outra cá.

(…)

Bibliografia:

https://bibliotecaaefga.files.wordpress.com/2019/07/viagens-na-minha-terra.pdf

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33A – Frades e Barões em Almeida Garrett

Saio hoje da minha área regional sulista para um plano, diria nacional, de um texto conhecido e muito interessante do ponto de vista literário e histórico.

Algumas das páginas mais ricas da literatura portuguesa são, com certeza, as do Capítulo XIII das Viagens na Minha Terra” de Almeida Garrett, em que ele discorre sobre os frades e os barões do seu tempo, em meados do século XIX.

Esta obra-prima do romantismo português foi publicada pela primeira vez em 1846, relatando uma viagem pelo vale do Tejo, entre Lisboa e Santarém, datada de 1843 no texto. Mas não é pela descrição do percurso que vimos agora a este tema, mas sim pela análise mordaz e assertiva que faz à sociedade do seu tempo, criticando a nova situação politico-social, em que após a guerra civil (1832-34), entre Absolutistas (Miguelistas) e Liberais, e com a legislação de Joaquim António de Aguiar (1834), o relevo anterior que tinha tido o Clero, nomeadamente o regular (monges e frades), dera lugar à Alta Burguesia que se tinha apropriado, através da hasta pública oficial, também dos vultuosos bens imóveis eclesiásticos (conventos, mosteiros, terras) espalhados por todo o país.

Desde o século XVIII que os Burgueses progressistas defendiam a mudança social e política tentando aceder aos centros de decisão política e à posse da terra, entrando naturalmente em choque com as ordens sociais dominantes (Clero e Nobreza) que dominavam essas áreas. Uma vez chegados ao poder com a Revolução Liberal de 1820, era previsível o conflito entre os Liberais progressistas e aquelas ordens privilegiadas e conservadoras. No plano ideológico, o Clero acusava o toque das novas ideias do Liberalismo, e definia os Liberais como “inimigos do Trono e do Altar”, salientando o facto de serem contra a Monarquia Absoluta e a tradição da Igreja na sociedade portuguesa. Os Liberais, por seu lado, imbuídos do espírito iluminista de Montesquieu, Rousseau e Voltaire, combatiam os privilégios da Igreja, e principalmente do Clero Regular com a sua antiga estrutura fundiária.

No entanto, a nova situação que decorria da vitória liberal na guerra civil, em que claramente se pôs em causa a estrutura secular do Antigo Regime, como o demonstra claramente o texto de Garrett, deixava fortemente desiludida a grande massa de liberais de menos posses que, julgando-se vitoriosa com a capitulação do Clero, estava agora dependente da Alta Burguesia. Afinal, conclui o Autor, os genuínos liberais não compreenderam os frades, nem estes compreenderam aqueles. Conclui mesmo que, depois de conhecer tudo o que se passou com aquela mudança, a expulsão dos frades foi mesmo uma asneira como nunca houve outra. Agora já era tarde, mas Garrett deixa escrito que “antes queria a oposição dos frades que a dos barões”!

Entrava-se assim na era dos Barões, que marcaria praticamente toda a segunda metade do século XIX, num tempo em que se generalizava a atribuição dos títulos de Barão e Visconde a todos aqueles que se iam distinguindo pelo seu poder económico e social. Eram já tantos que Garrett diria mais tarde, “foge cão que te fazem Barão! Mas para onde, se me fazem Visconde? Ele que mais tarde viria a ser também o Visconde de Almeida Garrett…

No próximo post, deixo então o texto de Almeida Garrett, ligeiramente encurtado, para que os leitores o possam fruir, entendendo o seu contexto histórico.

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32 – Quintã Dona Maior

Mais uma vez me aventuro pelas questões de linguística e, neste caso, na área da toponímia.
No concelho de Mértola, a cerca de 30 Km a SO desta bela e antiga vila alentejana, existe uma pequena povoação cujo nome, apresentado na placa da estrada que lhe passa perto, é Quintã Dona Maior. Um nome curioso, porque parece impercetível o seu significado conjunto.
As três palavras que o compõem são palavras comuns na língua portuguesa (Quintã / Dona / Maior), mas em conjunto não fazem sentido, pelo menos para mim:

Quintã é um termo antigo que designava uma parcela de terra de uma grande propriedade arrendada a uma família pelo seu dono, que hoje poderá significar uma pequena aldeia, como há muitas pelo país;

Dona é uma palavra respeitosa que se faz anteceder o nome de uma senhora, também podendo identificar a posse de alguma coisa;

Maior é um adjetivo comparativo irregular de grande, ou de algo que tem uma dimensão superior a outra coisa.

Portanto, cada uma por si, é mais ou menos comum e conhecida, mas o conjunto, principalmente a ligação entre Dona e Maior, não me parece fazer sentido.
Vou então por outro caminho, com uma hipótese que poderá ser confirmada, ou não, evidentemente: terá havido uma má transição da tradição oral para a escrita, isto é, o som das palavras continuaria o mesmo, mas verdadeiramente seriam escritas de outra forma. A minha proposta é que o nome antigo teria sido Quintandona Maior, que teria passado para Quintã Dona Maior. A palavra Quintandona não é comum no sul do país, mas existem localidades no Norte com esse nome, nomeadamente na zona de Penafiel (cujo conhecimento há pouco tempo, me levantou esta questão). Assim poderria ser a Quintandona Maior, presumindo que houvesse outra mais pequena. Muitas vezes tem acontecido que os mapas de estradas, e as placas respetivas junto das localidades, induzem a esta alteração (veja-se como exemplo o topónimo de Dogueno, relativamente próximo, que derivaria do nome tradicional a do Gueno, que já abordei noutro artigo).
Se assim for, já faz algum sentido o topónimo mertolengo, porque de outra forma, da que está atualmente grafada, não parece fazer sentido para quem o lê.
É verdade que a muitas pessoas, talvez a generalidade de todos aqueles que por lá passam, esta questão não se ponha, mas a bem do conhecimento, levanto aqui a questão, uma vez mais, solicitando a boa vontade dos que disto sabem mais do eu, para nos informarem da razão deste topónimo.

31 – Sobre o nome de “Corte” na toponímia do SE de Portugal

Mais uma vez neste espaço me aventuro por uma área da linguística que pessoalmente acho curiosa, procurando explicação para a utilização de palavras e o seu significado, na maneira de falar das populações do Sul de Portugal.

 Neste caso, venho falar de um nome que é muito comum na toponímia do SE do País. Efetivamente, nas povoações do interior central e leste do Algarve e no território contíguo do Baixo Alentejo, há um nome que se repete:  é a palavra “Corte” (substantivo comum singular, feminino, lida com o O aberto, como sorte, norte, porte ou morte).

Vejamos alguns exemplos, eventualmente os mais conhecidos:

– Concelho de Loulé: Corte Garcia (freguesia de Querença); Corte d’Ouro e Corte João Marques

  (Ameixial); Cortelha e Cortinhola (Salir), que podem ser entendidos como diminutivos de corte;

– Concelho de Tavira: Corte Serrano (Cachopo);

– Concelho de Alcoutim: Corte da Seda;

– Concelho de Castro Marim: Corte Gago; Corte Pequena (Odeleite);

– Concelho de Vila Real de Santo António: Corte António Martins (Cacela);

– Concelho de Almodôvar: Corte Fidalgo e Corte Cabo (S. Barnabé); Corte Pinheiro e Corte Figueira

   Mendonça (Santa Cruz); Corte Zorrinho (Almodôvar);

– Concelho de Mértola: Corte Pinto e Corte Gafo.

Qual o significado e a razão da proliferação deste nome nesta região alargada do SE do país?

Vamos apresentar algumas ideias:

Na generalidade de Portugal a palavra corte, como nome comum e popular (não confundir com a Corte do Rei), tem um significado relacionado com um abrigo para gado, local ou espaço onde se recolhem à noite os animais herbívoros e domésticos que pastam nos campos. Tal como curral.

Poderia haver alguma relação destes topónimos com esta aceção da palavra, já que este território rural tem uma grande tradição histórica de pastorícia, e poder-se-á admitir que os rebanhos em presença fixa, ou em transumância, precisariam de algum espaço onde fossem recolhidos quando fosse necessário. Sabemos também que em séculos passados os rebanhos de pequenos herbívoros (caprinos e ovinos, principalmente) da zona litoral do Algarve eram deslocados no verão para o interior serrano, para os desviar dos frutos maduros da época, como os figos e as uvas, onde podiam causar danos nas colheitas. É o caso concretamente, por exemplo, do concelho de Loulé, onde era prática corrente essa deslocação entre o S. Tiago (25 de julho) e o S. Miguel (29 de setembro). Neste contexto, para identificar devidamente cada um dos poisos desses rebanhos, poderia dar-se a alguma povoação que lhe ficasse próxima este nome comum, a que se acrescentava o nome próprio. Ou até mesmo ser esse abrigo a originar a fixação de população num determinado local, e ter-lhe sido atribuído um nome em função disso. Esta é uma hipótese que poderia explicar o nome e a sua difusão …

Mas, para além de ser uma hipótese, nem todas as componentes são coincidentes e confirmam a explicação. Há um aspeto que considero relevante e que não condiz: se essa fosse a explicação para o nome e a sua frequência, seria de constatar que este nome continuasse a ser comum na vida corrente das pessoas que continuam neste território a viver da criação de gado. Ora o que acontece é que no vocabulário popular deste território (tanto quanto me é dado conhecer), não se utiliza a palavra corte para designar estes espaços ou instalações para o gado. Pelo menos no último século. Os nomes utilizados são curral, arramada, estábulo, pocilga, dependendo do tipo de animais que se abrigam. Assim sendo não fica a explicação anterior, que parecia plausível, confirmada pela tradição oral e escrita e, portanto, ficamos no limiar da explicação.

Uma vez mais, não tendo certezas, aqui apresento este tema, que poderá interessar a alguém que saiba mais do que eu, e que nos possa ajudar…

30 – A Escrita do Sudoeste

Enquadramento histórico e geográfico

Escrita do Sudoeste é o nome pelo qual é conhecido um conjunto de caracteres fonéticos gravados em pedras locais – estelas – com cerca de 2500 anos (período da Idade do Ferro peninsular, anterior à conquista romana), que desde há muito têm sido encontradas no sudoeste da Península Ibérica. Em particular, o espaço onde têm sido identificadas mais estelas gravadas é no território português, no interior serrano dos concelhos de Loulé e de Silves, e de Almodôvar e Ourique, confinantes entre si e por onde se estende a Serra do Caldeirão.

No concelho de Loulé, destacam-se os territórios das freguesias do Ameixial, Salir e Benafim. Na primeira destas freguesias foi encontrada uma dezena de estelas (num total de cerca de 75 identificadas em território português). Os sítios dos Vermelhos, Tavilhão, Azinhal dos Mouros, Portela e outros da parte ocidental da freguesia (e bem perto, a Corte Pinheiro, já no Alentejo), ladeando o curso inicial da ribeira do Vascão e o do Vascanito, deram a conhecer a maior parte dessas peças, e presume-se que ainda haja mais por descobrir. Muitas destas “pedras com letras” foram descobertas em situação de reutilização nas paredes das casas ou em demarcação de terrenos.

Fig. 1 – Estela do Viameiro – Salir – Loulé

     Esta localização numa zona de relativa interioridade, como a indicada nos concelhos referidos, também é interessante, considerando que os povos desta região se abriam ao Mediterrâneo e contactaram por diversos meios e motivos com as civilizações marítimas coevas baseadas nas suas margens, como os Fenícios, Gregos e Cartagineses. Neste canto da Península, antes dos Romanos (fins do séc. III a. C.), viveram diversos povos com as designações (algumas redundantes) de Cónios, Cinetes, Turdetanos, Tartessos e outros, alguns dos quais presumivelmente estiveram de alguma forma ligados a esta escrita. Uma das mais celebradas cidades desta região no período pré-romano era Conistorgis, que terá chegado à época romana, havendo referência de autores romanos, e cuja localização exata também ainda hoje permanece obscura. E, no entanto, é longe da costa, na serra, que se encontraram quase todas as estelas.

A escrita do Sudoeste está considerada como a mais antiga da Península Ibérica e a terceira mais antiga da Europa, depois do grego arcaico (Linear A e B da Civilização Cretense), e da escrita fenícia. Conhecem-se os sons que cada símbolo reproduz (portanto consegue ler-se), mas ainda hoje permanece indecifrável o seu significado, a exemplo, aliás do citado grego arcaico, apesar de ter havido muitas sugestões e tentativas de leitura. Faltará encontrar-se por aqui o equivalente à pedra de Roseta e ao sr. J-F. Champollion para os hieróglifos egípcios…

É uma escrita sinistrorsa (escreve-se da direita para a esquerda, modelo que é usado em outras escritas do Próximo Oriente, como o árabe e o hebraico). As estelas estavam colocadas na vertical sobre a terra, com cerca de 1/3 da sua altura enterrada, e a escrita está naturalmente na sua parte descoberta, desenvolvendo-se em arco, começando em baixo, seguindo o contorno exterior da estela, no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio.


Alguns arqueólogos amadores fizeram pesquisas e colecionaram peças que foram levadas para os Museus de Arqueologia em Lisboa e Faro, como José Rosa Madeira e Manuel Gomez Sosa, ambos ligados à freguesia do Ameixial, o primeiro por nascimento e o segundo por lá ter residido.

Grandes nomes da arqueologia nacional como os Drs. Estácio da Veiga, Leite de Vasconcelos e Caetano Beirão, e a louletana Drª Isilda Martins pesquisaram e deixaram obra escrita sobre este assunto.

Nos últimos anos, desde 2008, tem sido desenvolvido um amplo trabalho de pesquisa e divulgação no âmbito do chamado Projeto Estela, onde se têm destacado os arqueólogos Pedro Barros e Samuel Melro e que tem posto este tema na atualidade cultural da região.

                              

Fig. 2 – Estela dos Vermelhos – Ameixial – Loulé

            

Almodôvar tem o principal museu desta escrita, mas Loulé, no seu Museu Municipal (castelo) também mostra algumas estelas deste período.

A Escrita do Sudoeste é assim uma das jóias da coroa do nosso património histórico-cultural que até há poucos anos não tem tinha a devida atenção e divulgação. Não há muitas áreas da cultura (ou outras) que tenham a importância e a projeção deste tema para as freguesias e concelhos envolvidos, o que deveria ser motivador da autoestima das suas populações, pelo que tudo o que for feito para dar a conhecer este tema será positivo.

Fig. 3 – Estela da Corte Pinheiro – Santa Cruz – Almodôvar


                                                                                                                                       

        

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29 – Outras curiosidades da mesma zona do Baixo Alentejo

Há poucos anos estive na aldeia e sede de freguesia de Santa Cruz, no concelho de Almodôvar. Uma pequena povoação, com um casario bem cuidado e maioritariamente pintado de branco, numa orografia que ainda a liga à serra do Caldeirão.

Num breve roteiro que fiz na zona, o que mais me despertou a atenção foi a localização do espaço sagrado local. O cemitério da freguesia fica situado a mais de 400 metros da zona habitacional. E a histórica igreja matriz (manuelina – séc. XVI) ainda mais longe, mais outros 400 metros (pelo caminho melhor, porque parece haver outro antigo, de pé-posto, um pouco mais curto).

Este distanciamento de igrejas e cemitérios em relação à povoação é uma situação recorrente pelo menos nos concelhos de Almodôvar, Castro Verde e Mértola, como se pode também confirmar em Corte Figueira Mendonça, Santa Bárbara de Padrões, S. Pedro de Sólis, S. Miguel do Pinheiro, S. João dos Caldeireiros, S. Sebastião dos Carros, etc. Parece ser uma situação excecional, num processo assumido, este afastamento do espaço sagrado, quando todos sabemos que historicamente a tradição cristã nacional (e europeia) punha a igreja e o cemitério no centro da povoação, em volta dos quais se desenvolvia a área residencial. Só no séc. XIX, com o governo dos Cabrais (o que até foi causa da revolta da Maria da Fonte, no Minho) é que se iniciou o afastamento dos cemitérios do centro das povoações, por razões de saúde pública. Mas as igrejas paroquiais sempre permaneceram no centro.

Depois, uma pequena visita à igreja matriz local, anunciada em tabuletas como monumento a visitar, continua a surpreender-nos. É um templo de razoável dimensão, de três naves, com o reportório habitual e assinalável da arquitetura manuelina, e outros elementos posteriores, nomeadamente da época barroca. O facto de estar quase permanentemente fechado, não sendo local habitual de culto, origina a rápida degradação do edifício a que as reparações levadas a efeito não têm conseguido por termo.

Mas ainda há mais aspetos invulgares: no espaço envolvente desta igreja, numa zona isolada, escondida e de relevo acidentado, encontramos ainda as ruínas de duas outras capelas (ou deveríamos dizer ermidas) de uma só nave, em estado de completa ruína, de que só restam as paredes exteriores de relativa dimensão, a indicar-nos que aquele espaço era efetivamente o espaço sagrado da freguesia, mas que os fregueses quiseram separado, para todos os efeitos, do espaço profano das suas vidas. E ainda que, enquanto estas capelas em ruínas ocupam a parte superior de uma colina, a igreja matriz fica situada num plano mais baixo da encosta, num patamar pouco acima do vale que se estende ao lado. Portanto, mais uma originalidade, a igreja principal da freguesia situar-se num plano mais baixo e mais escondida do que outros templos de menor dimensão e importância, no mesmo exclusivo enquadramento.

Tenho algumas hipóteses de explicação para estas particularidades de antropologia cultural que tentarei aferir, mas se alguém, dos que conseguiram ler este texto até ao fim, quiser apresentar desde já alguma tese explicativa, muito agradeço.

28 – Maneiras de falar…

A exemplo do que aqui fiz há algum tempo sobre Quarteira, vou hoje fazer uma pequena incursão na linguística (local), novamente referindo que não sou um especialista na matéria, mas apenas alguém que reflete sobre algumas situações curiosas nesta matéria. Se alguém que saiba mais do que eu, quiser apresentar explicações mais científicas para o que apresento, agradeço que o faça.

Concretizando: na zona sul do Baixo Alentejo, na área (pelo menos) dos concelhos de Castro Verde, Almodôvar e Mértola, que conheço relativamente bem, as pessoas têm o costume de se referir a alguns topónimos (nomes de localidades) de uma forma curiosa, que pode causar alguma dificuldade de perceção a quem não é da zona. Assim, por exemplo, dizem “estive na do Fialho”, “vou à do Corvo”, “fui à de Boi”, “à dos Grandes”, “a do Pinto”, “à de Neves”, etc.

Para quem é de fora, nota-se que falta aqui no meio da expressão qualquer palavra que a torne inteligível, mas que os locais entendem perfeitamente, e usam habitualmente. Não é uma falta completa da palavra, porque ela está subentendida, e daí não terem problema no seu entendimento. Mas, para complicar, também não existe uma explicação única para identificar a palavra em falta: poderia ser casa / herdade / povoação / aldeia, em todo o caso, como se depreende, sempre uma palavra no feminino. Vejamos cada uma das possibilidades:

Casa – também utilizam a expressão “fui à do meu tio”, ou “venho da do meu primo”, naturalmente querendo dizer que “fui à casa do meu tio” ou “venho da casa do meu primo”. Em todo o caso, referem-se a uma casa individual, de habitação ou de comércio (taberna/venda), de alguém conhecido de todos, pelo que neste caso não se aplicaria;

Herdade – típica fórmula da organização fundiária do Alentejo, que terá criado no seu contexto povoados com várias pessoas;

Povoação – referindo-se a qualquer aglomerado de habitações de maior ou menor dimensão;

Aldeia – povoação já com algum significado populacional e/ou administrativo.

Pelo conhecimento que temos dos costumes locais, também excluiria aldeia como sendo a palavra subentendida. E isto porque na zona as pessoas só chamam aldeia à sede de freguesia, à qual se referem quando dizem “vou à aldeia”, tal como dizem “vou à vila” quando se referem à sede de concelho.

Sobre herdade, poderá ter sido a origem de muitos pequenos núcleos habitacionais, mas hoje isso já não tem significado para a maioria dos topónimos a que nos referimos.

Assim, para mim, a palavra subentendida que melhor se adapta, seria povoação, ou outro sinónimo no feminino.

Também é curioso que, quando alguém, pelas suas funções, tinha necessidade de grafar a expressão (por exemplo,  os antigos párocos no registo de batismo, a JAE na identificação das localidades nas estradas) incorria geralmente em erro, porque não sendo da zona, não percebia esta forma de falar. É o caso por exemplo, de “a Donegas” por “a do Negas” (em S. Pedro de Sólis), ou de “Dogueno” por “a do Gueno”, sendo que a forma Dogueno se fixou pela placa da estrada nacional nº 2.

Claro que esta forma de subtender palavras não é exclusiva da zona. Há regiões onde as mulheres dizem “o meu (marido)”, como também se verifica na expressão humorística “Ó Abreu, dá cá o meu (dinheiro)!” .

Como diz o nosso povo, “Para bom entendedor… (meia palavra basta).”

27 – Ruínas arqueológicas de Loulé Velho – Quarteira – Loulé

A propósito da atual proposta de criação da Reserva Natural da Foz do Almargem e do Trafal, trago à atenção de todos que esta área tem ainda um valor cultural significativo: desde o período Neolítico que se comprova a presença humana nesta zona litoral a nascente de Quarteira, conhecida popularmente como Loulé Velho, como indicam, entre outros, os arqueólogos abaixo citados, Leonor Rocha, João Pedro Bernardes e Isabel Luzia, já neste século, e dos quais retiramos estas informações.

Com efeito, as escavações conduzidas por Leonor Rocha, em 1999, identificaram diversos objetos de uso humano da época neolítica, especialmente materiais cerâmicos (vasos decorados e taças carenadas), e muito poucos materiais líticos 1.

É, no entanto, da época romana, que se conhece um conjunto de vestígios, de que há referências escritas desde o século XVIII (Frei Vicente Salgado – 1786), que na atualidade estão reduzidos a uma pequena porção daquilo que terão sido ao longo dos tempos, num espaço junto à linha de costa, entre as ribeiras de Almargem e de Carcavai, que outrora tinha uma outra geografia, e que permitiria a acostagem de embarcações vindas por mar. São estruturas e objetos que foram datados do período entre os séculos I a. C. e VII d. C., principalmente ligados ao processamento de produtos piscícolas, entre as quais várias cetárias, onde se produziria o famoso garum (pasta de peixe e marisco muito apreciada no mundo romano).

Complementarmente, outras informações que temos dos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX (Estácio da Veiga e Teixeira de Aragão), falam-nos de equipamentos habitacionais, provavelmente uma luxuosa villa, com as suas termas e compartimentos pavimentados a mosaico e, curiosamente, não se referem às cetárias. Há igualmente referências a estruturas que poderão ser relacionadas com as fundações de uma basílica paleocristã, algumas sepulturas, e restos de canalizações de chumbo.

Pensa-se que grande parte das estruturas da época romana já tenham desaparecido, por efeito da ação do mar sobre a costa, que nas últimas décadas tem sido extraordinária, desconhecendo-se a extensão exata do seu perímetro, mas é provável que, soterrado, ainda haja potencial arqueológico considerável 2. O conjunto de fotos apresentado no trabalho de Isabel Luzia 3, registadas no ano de 1978, mostram claramente o conjunto de estruturas e objetos que então ainda estavam visíveis e que a erosão marítima quase totalmente eliminou desde então.

Mais recentes, mas também já desaparecidos, eram duas construções de caráter defensivo – os chamados “forte velho” e o “forte novo” (da Guarda Fiscal), de que se avistam ainda deste último, na maré baixa, alguns blocos desagregados da sua estrutura.

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     Cf. ROCHA, Leonor – “O sítio neolítico da praia do forte Novo – Quarteira- Loulé” – Ver. Al-Ulyã – nº 10 – 2004.

       2  Cf. BERNARDES, João Pedro – “Intervenção arqueológica de emergência no sítio romano de Loulé- Velho” – Revista Al-Uluà – nº 12 – 2008.

      3  Cf.  LUZIA, Isabel – “O sítio arqueológico de Loulé Velho” – Revista Al- Ulyã – nº 10 – 2004.

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