33B – Frades e Barões em Almeida Garrett

Almeida Garrett – “Viagens na Minha Terra

CAPÍTULO XIII

Dos frades em geral.

Frades… frades… Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando. No ponto de vista artístico, porém, o frade faz muita falta.

Nas cidades, aquelas figuras graves e sérias com os seus hábitos talares, quase todos pitorescos e alguns elegantes, atravessando as multidões de macacos e bonecas de casaquinha esguia e chapelinho de alcatruz que distinguem a peralvilha raça europeia — cortavam a monotonia do ridículo e davam fisionomia à população.

Nos campos o efeito era ainda muito maior: eles caracterizavam a paisagem, poetizavam a situação mais prosaica de monte ou de vale; e tão necessárias, tão obrigadas figuras eram em muitos desses quadros, que sem elas o painel não é já o mesmo.

Além disso, o convento no povoado e o mosteiro no ermo animavam, amenizavam, davam alma e grandeza a tudo: eles protegiam as árvores, santificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solenidade.

 O que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os substituíram. É muito mais poético o frade que o barão. O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote da sociedade velha. O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova. Menos na graça… Porque o barão é o mais desgracioso e estúpido animal da criação. Sem excetuar a família asinina que se ilustra com individualidades tão distintas como o Ruço do nosso amigo Sancho, o asno da Pucela de Orléans e outros. O barão (Onagrus baronius, de Linn., L’âne baron de Buf.) é uma variedade monstruosa engendrada na burra de Balaão, pela parte essencialmente judaica e usurária da sua natureza, em coito danado com o urso Martinho do Jardim das Plantas, pela parte franchinótica e sordidamente revolucionária do seu carácter.

O barão é, pois, usurariamente revolucionário, e revolucionariamente usurário. Por isso é zebrado de riscas monárquico-democráticas por todo o pêlo. Este é o barão verdadeiro e puro-sangue: o que não tem estes caracteres é espécie diferente, de que aqui se não trata.

Ora, sem sair dos barões e tornando aos frades, eu digo: que nem eles compreenderam o nosso século nem nós os compreendemos a eles… Por isso brigámos muito tempo, afinal vencemos nós, e mandámos os barões a expulsá-los da terra. No que fizemos uma sandice como nunca se fez outra. O barão mordeu no frade, devorou-o… e escoiceou-nos a nós, depois.

 Com que havemos nós agora de matar o barão? Porque este mundo e a sua história é a história do «castelo do Chucherumelo». Aqui está o cão que mordeu no gato, que matou o rato, que roeu a corda, etc., etc.: vai sempre assim seguindo.

Mas o frade não nos compreendeu a nós, por isso morreu, e nós não compreendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de morrer. São a moléstia deste século; são eles, não os jesuítas, a cólera-morbo da sociedade atual, os barões. O nosso amigo Eugénio Sue errou de meio a meio no «Judeu Errante» que precisa ser refeito. Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não compreender, a nós, ao nosso século, às nossas inspirações e aspirações: com o que falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade, uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo lhe não servia nem o servia.

Nós também errámos em não entender o desculpável erro do frade, em lhe não dar outra direção social, e evitar assim os barões, que é muito mais daninho bicho e mais roedor. Porque, desenganem-se, o mundo sempre assim foi e há de ser. Por mais belas teorias que se façam, por mais perfeitas constituições com que se comece, o status in forma-se logo: ou com frades ou com barões ou com pedreiros-livres se vai pouco a pouco organizando uma influência distinta, quando não contrária, às influências manifestas e aparentes do grande corpo social. Esta é a oposição natural do Progresso, o qual tem a sua oposição como todas as coisas sublunares e superlunares; esta corrige saudavelmente, às vezes, e modera a sua velocidade, outras a empece com demasia e abuso: mas, enfim, é uma necessidade.

Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a oposição dos frades que a dos barões. O caso estava no saber conter e aproveitar. O Progresso e a Liberdade perderam, não ganharam. Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades — não dos frades que foram, mas dos frades que podiam ser. E sei que me não enganam poesias; que eu reajo fortemente com uma lógica inflexível contra as ilusões poéticas em se tratando de coisas graves. E sei que me não namoro de paradoxos, nem sou destes espíritos de contradição desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca estão contentes com o que é. Não, senhor: o frade, que é patriota e liberal na Irlanda, na Polónia, no Brasil, podia e devia sê-lo entre nós; e nós ficávamos muito melhor do que estamos com meia dúzia de clérigos de requiem para nos dizer missa; e com duas grosas de barões, não para a tal oposição salutar, mas para exercer toda a influência moral e intelectual da sociedade — porque não há de outra cá.

(…)

Bibliografia:

https://bibliotecaaefga.files.wordpress.com/2019/07/viagens-na-minha-terra.pdf

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *