3 – As relações da Sociedade com a evolução política do País
Já foi aflorada aqui a particularidade de este gabinete de leitura ter alguma relação com a evolução política que se ia processando por todo o país. Também já se concluiu (pela definição do grupo e pelos seus atos) que esta sociedade se podia catalogar politicamente de liberal. Passemos a interessar-nos por alguns factos quo podem demonstrar esta tese.
A primeira manifestação pública de natureza política que a coletividade organizou foi pouco tempo depois da sua criação, aquando do aniversário natalício de D. Maria II, “Rainha Constitucional“, que se teria passado em 4 de abril de 1836. Constou a festividade (como parece ser hábito na época, porque se repete várias vezes) de um baile e bastante iluminação. Para o baile convidaram-se as “pessoas decentes da vila”. A festa teria sido organizada por uma comissão e tendo sido levada a cabo, entre outras pessoas, por “algumas senhoras que colaboraram“, e que na sessão posterior da sociedade foram alvo do um agradecimento da coletividade. Interessante verificar que, não havendo registo de senhoras entre os membros da sociedade, a elas recorreram para prestarem a sua colaboração na festividade. Com certeza que essas senhoras eram as esposas de alguns membros do Gabinete, talvez mesmo dos que formavam a comissão organizadora. A sua participação deve ter-se limitado a levar a efeito o serviço de bufete (doces, bolos e algumas bebidas, como o chá) durante o baile.
Um segundo acontecimento, de longe o mais importante, quer pela sua ressonância política, quer pela forma como foi celebrado – surge em 13 de setembro de 1836. Que se passa então? Citemos as palavras do secretario da sociedade na sessão daquela data: “Chegou de Lisboa a fausta notícia de que na capital se tinha proclamado a Constituição de 1820 (sic), a que Sua Majestade a Rainha tinha anuído” (facto que tinha acontecido em 10 de setembro de 18 – N. A.).
A Sociedade devia dar demonstrações de regozijo e que se deveriam convidar as autoridades e todos juntos se dirigissem aos sítios mais públicos desta vila e aí vitoriassem a Constituição de 20. (…)
Não foi possível aos membros da Sociedade sufocar por mais tempo os transportes de alegria em que superabundavam seus corações. Prorromperam vivas à Constituição, à Rainha e a S. A. Seu digno esposo e, tendo-se acalmado os ânimos dos entusiasmados membros da sociedade, entrou a sessão na devida ordem. (…) Nomeou-se uma comissão para ir convidar as autoridades. A aclamação seria feita no próprio dia à noite. Algum tempo depois, chegavam o Presidente da Câmara, o Juiz de Direito, o Administrador do Concelho e o Comandante da força militar da vila.
Foram para a praça principal, precedidos da Sociedade Filarmónica.
Foram dadas vivas aos já citados e a todos os amantes da liberdade com particularidade aos Malaguenhos proclamadores da Constituição do ano 12, sendo estes vivas proclamados pelo imenso gentio que naquele sítio se tinha agrupado, e pela tropa com grande entusiasmo. A Sociedade Filarmónica tocou o hino de 1820 e mais hinos patrióticos.”
Assim foi descrita por José Francisco Cavaco a preparação e a realização das comemorações, no próprio dia em que em Loulé se soube tal notícia.
Cabe aqui um pequeno pormenor que é o de, na maior parte dos casos que em que se alude à Constituição proclamada em 1822, se denominar esta de “Constituição de 20′. Este próprio facto aconteceu em Lisboa, quando se pediu a sua reposição à Rainha. Representa talvez uma aproximação aos ideais “vintistas”.
Mas analisemos as comemorações, para delas podermos extrair algo de proveitoso para o nosso estudo.
Repare-se, desde que já, que a notícia levou cerca de 3 dias para chegar a Loulé, o que prova a distância real e efetiva que existia entre o Algarve e Lisboa.
Toda a descrição se refere, do princípio ao fim, à alegria e entusiasmo com que os membros da sociedade acolheram a “fausta noticia“.
Da sociedade partiu a iniciativa das comemorações, para o que posteriormente foram convidadas as autoridades louletanas, que aqui demonstram, além de uma adesão aos mesmos ideais vintistas, uma respeitosa consideração pela sociedade como grupo importante na vila.
Acompanhados pela Sociedade Filarmónica dirigiram-se todos para a praça principal (hoje talvez o Largo Gago Coutinho) e aí se tocaram “hinos patrióticos” e lançaram vivas às supremas autoridades do Reino. Sabe-se ainda que no dia seguinte continuaram os festejos “em honra dos felizes acontecimentos ocorridos nesta vila”. Organizou-se um baile “e competente chá, para o que se convidaram as pessoas decentes da vila”. O baile fez-se na sala de Audiências do Tribunal.
Na sessão seguinte, em 16.set.1836, fez-se o “Juramento pelos membros da sociedade, de fidelidade à Constituição proclamada em 23.set.1822”.
Fez-se ainda uma felicitação à Rainha e um pedido de armas para a Guarda Nacional “para sossego e segurança dos habitantes da vila”.
Ora bem, continuemos a nossa análise.
Parece-nos que a grande conclusão a tirar é a de que a Sociedade participava de um ideal altamente liberal, no sentido mais revolucionário de 1820. A Constituição, elaborada e promulgada em 22, foi, como já aqui foi dito, a bandeira do um certo liberalismo de esquerda, quase no sentido “democrático”. Com efeito, era imensamente mais esquerdista do que a Carta Constitucional dada por D. Pedro IV em 1826 e que. dez anos mais tarde, ainda se encontrava em vigor.
Alguém que, passados que tinham sido catorze anos, ainda defendia a primeira Constituição que houve Portugal, teria forçosamente que alinhar na ideologia que lhe é subjacente, a ideologia por que tinham lutado (sem grandes resultados práticos, aliás) homens como Manuel Fernandes Tomás, “o pai da liberdade portuguesa”. De outra forma não se pode compreender um tão grande empenho, uma tão grande alegria depois de conseguida a reposição da Constituição de 22. Aliás esse facto, além do aspeto ideológico, viria a alterar e a melhorar sensivelmente a maneira de viver dos habitantes de uma vila a cerca de 300 Km de Lisboa? Com certeza que materialmente os ganhos foram muito poucos…
Talvez em Loulé se desconhecessem, de início, os meandros e tentativas de ganhar tempo de que a Rainha se fez uso. Talvez por isso ela fosse bastante aclamada nas comemorações!
Outro aspeto, e que não poderá passar despercebido é o das vivas dadas aos Malaguenhos – “amantes da liberdade” – que tinham proclamado a Constituição de Cádis, promulgada na relativamente longínqua data de 1812 e que ideologicamente era do teor da nossa de 22, ou vice-versa…
Aqui se denota que se fazia uso no Gabinete de um dos itens apresentados em 1820, no projeto de associação patriótica de Lisboa: correspondência com países estrangeiros, para se saber o que se passa no exterior.
Por tudo isto, efetivamente, a Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé, não deslustrava em nada, pelo contrário, as suas congéneres mais célebres das grandes cidades portuguesas já citadas.
Um último pormenor sobre estas festividades – o pedido de armas para a Guarda Nacional “para sossego e segurança dos habitantes da vila”. Aqui se entrevê que se sabia de antemão que não seria mais respostas que se repunha a Constituição de 22. Se entrevê também uma alusão a forças conservadoras que praticavam atos de banditismo, como é o caso concreto das guerrilhas do já citado “Remexido”, José Joaquim de Sousa Reis.
Os restantes acontecimentos de natureza política são, como já ficou dito atrás. de menor importância. Citemo-los:
Na sessão de 22 de Setembro de 37 regista-se a “alegria pelo nascimento do príncipe herdeiro”, tendo-se feito “uma manifestação pública de regozijo“, no dia do batismo.
Uma última manifestação, que de certo modo tem um caráter interno, é o de “uma felicitação ao sócio Fontoura (General), pelo grande acontecimento da captura do infame guerrilha Remexido”, e a subsequente deputação que se faz a Faro ao mesmo general (que, no entanto, nesta última data aparece referenciado como Coronel Fontoura – 15 de agosto de 1836).
Parece-nos que tudo o que ficou dito prova cabalmente as conclusões que também já ficaram expressas, entre as quais avulta a do patriotismo e defesa dos ideais vintistas pelos membros da sociedade no seu conjunto.