I – SUAS CARACTERÍSTICAS
1 — A sociedade no contexto das sociedades do género que a partir de 1820 se criaram por todo o País
Quando em 9 de dezembro de 1835, o Prior José Rafael Pinto, o velho, propôs a uma assembleia de homens ilustres da prestigiosa vila de Loulé, a criação de um gabinete de leitura na mesma vila, estavam lançadas as bases de uma coletividade que bastante contribuiria para o nome e fama daquela localidade.
Não foi das primeiras sociedades de carácter cultural que se criaram no País. 1835 já era uma idade que distava quinze anos de 1820 (ano de Revolução Liberal). A partir desta data (1820), com efeito, por todo o País e com especial destaque, é evidente, para Lisboa e Porto e até Coimbra (centro tradicional de contestação e estudantil) se formaram umas coletividades que, sendo de cariz político marcadamente liberal, além de uma atividade cultural, se interessavam abertamente pela implantação do regime constitucional em Portugal.
Logo em 26 de setembro de 1820 foi apresentado à “Assembleia Portuguesa” um projeto de associação patriótica nos moldes atrás descritos e que se pode verificar no que seguidamente citamos:
“… Entre essas instituições ocupa um distinto lugar a de um gabinete de leitura, aonde se achem reunidos todos os escritos que próprios sejam para ilustrar e guiar a nação na inteligência e esforços aplicáveis ao prosseguimento da árdua mas heroica empresa de estabelecer e firmar a liberdade pela mais perfeita constituição…”1
Requeria-se ainda que, para o cabal desempenho das suas funções, este gabinete de leitura carecia de, resumidamente, estes itens:
1º – Conhecimento particular dos escritos que poderiam interessar à sociedade, dentro do âmbito para que fora criada:
2º – Correspondência com países estrangeiros, para se saber o que se passa no exterior;
3º – Fundos pecuniários suficientes para a aquisição de livros, jornais e outros materiais necessários;
4º – Locai cómodo onde se instale o gabinete, e onde em tranquilidade possa prosseguir os seus fins;
5º — Fundos pecuniários suficientes para a sua fundação e conservação.
Este projeto viria a constituir a célebre “Sociedade Literária Patriótica de Lisboa”, fundada no dia 1 de janeiro de 1822, e onde teve um papel bastante ativo Almeida Garrett.
Efetivamente aqueles eram os desígnios e de certo modo as finalidades implícitas dos gabinetes de leitura que se iriam espalhar por todo o país, e que em quase todas as capitais de distrito, pelo menos, existiriam.
Se atentarmos na transcrição que acima fizemos, podemos verificar que uma das grandes preocupações era a de “prosseguir a árdua, mas heroica empresa de estabelecer e firmar a liberdade”. Ora em 1820, apresentar propostas deste género só poderia ser de liberais esclarecidos, que anteviam desde logo que essa finalidade não poderia ser atingida sem luta contra as classes mais interessadas na situação que anteriormente se vivera em Portugal.
Era ainda necessário “ilustrar e guiar a nação na inteligência” através de escritos que o pudessem fazer. O povo português estaria num estádio cultural bastante atrasado e dominado pelas forças mais conservadoras e, se se que queria trazê-lo ao seio das forças que agora lutavam pela liberdade, era necessário ilustrá-lo, demonstrar-lhe eficientemente que o caminho a seguir teria que ser outro, para que efetivamente todos (ou a maior parte) se sentissem irmanados no ideal que vinha da França de 1789.
Talvez melhor que tudo e todos, esta missão de instruir deveria estar a cargo de sociedades de carácter cultural e político ao mesmo tempo, visto que eram estas coletividades quo estavam mais entranhadas nas camadas populares do interior nacional. A elas caberia dinamizar, não só em Lisboa, Porto e Coimbra, mas também nas cidades e vilas mais distantes e, por conseguinte, mais ignorantes do fenómeno politico o social que era ou poderia vir a ser uma revolução de caraterísticas liberais.
Não se restringem, contudo, à missão de educar ou guiar espíritos mais ou menos ignorantes. Estas sociedades, com efeito, passaram a tomar um papel bastante mais ativo quando as ideias liberais passaram a ser atacadas, como em 1823, nas lutas que os absolutistas moveram ao regime saído de 1820 e cuja principal bandeira era a Constituição de 1822, a mais vanguardista das que no século XIX se fizeram em Portugal. Fizeram alistar muitos voluntários que se incorporavam de imediato nas fileiras liberais. Grande parte dos soldados tinha sofrido influência destas sociedades e alguns prémios lhes cabem, como no caso da Ponte de Amarante.
Naquele caso, que insurrecionou a maior parte de Trás-os-Montes, teve papel relevante a “Sociedade Literária Patriótica Portuense“, na qual se destacavam, entre outros, os estudantes de Coimbra e depois homens de vulto do Liberalismo em Portugal, os irmãos Manuel e José Passos, o primeiro dos quais chefe de governo durante o Setembrismo, com o nome de Passos Manuel.
As grandes datas revolucionárias eram festejadas em todo o País e a consciência popular despertada através da ação destas sociedades. Foram, pode-se dizer, uma das forças impulsionadoras da opinião pública.
Quando constava algum feito heroico praticado por qualquer cidadão em defesa da liberdade, as sociedades patrióticas corriam logo a saudá-lo e a cobri-lo de louvores.
Mas voltemos ao caso particular do Gabinete de Leitura de Loulé. É evidente que não foi fundado no âmago do puro revolucionarismo de 1820 e anos subsequentes. Até 1835, embora não mediassem muitos anos, muita coisa tinha acontecido. Foi até um dos períodos mais conturbados da nossa história pátria. E nem Loulé, embora sendo uma destacada povoação do Algarve, estaria em condições infraestruturais para poder ter uma sociedade em atividade ao nível das de Lisboa ou Porto. Limitava-se, evidentemente, ao que de bom existia no Algarve, região distante de Lisboa, à qual a má qualidade das vias de comunicação emprestava uma ideia de maior distância do que a que realmente existia.
A Sociedade do Gabinete de Leitura de Loulé, em que tomavam assento, como já dissemos, os homens mais ilustrados da vila, tinha como finalidades explícitas “espalhar as luze” e a “instrução”. Efetivamente, embora de uma forma mais atenuada, encontram-se aqui as ideias-força que transcrevemos da sociedade lisbonense. “Espalhar as luzes” era levar os ideais iluministas (filosóficos e políticos) a camadas que dificilmente os poderiam atingir. “Instruir” logicamente queria levar o mínimo de conhecimentos, de aprendizagem dos factos mais correntes, aos mais desfavorecidos neste campo.
Esta ideia de desenvolvimento cultural da terra estava inserida, com efeito, no próprio timbre da sociedade, da autoria do já referido Padre José Rafael Pinto:
“Um círculo dentro do qual em duas figuras retilíneas se veja em uma as Armas da vila, e da outra um livro com uma pena e que no lugar que se julgar mais apropriado se leia 29 de dezembro de 1835 – e bem assim – Gabinete de Leitura de Loulé.”
Esclareça-se que a data apresentada — 29 de dezembro de 1835 – é a data da instalação da sociedade, cuja primeira residência se desconhece. Sabe-se, no entanto, que teria aí residido até 31 de dezembro de 1836 – um ano depois, data que passou para a casa da Misericórdia, onde fora a antiga Câmara.
Aquele timbre foi apresentado na sessão de 2 de junho de 1837 e mandado fazer em 30 do mesmo mês em Lisboa, presumindo-se que no Algarve não existiriam casas da especialidade.
Todos os anos, especialmente naqueles estava em efetiva atividade (e que nem sempre aconteceu até 1848) se comemorava solenemente com discursos e sessões públicas o dia da sua instalação.
Deixou-se entender há pouco que o gabinete teve períodos de relativa sonolência, e outros de franca atividade.
Entre os de intensa atividade citam-se os anos seguintes à sua formação, isto é, de 1836 até ao verão de 1840; o princípio dos anos 1841 e 1842. Em contrapartida os segundos semestres destes anos e, bem assim, como os anos de 1843, 45, 46 e 47 não são registados no livro de Atas da Sociedade, que serve de base ao presente trabalho. No entanto, aparecem atas separadas por várias folhas em branco. Seria o devido lugar para as atas das sessões havidas e que por qualquer motivo não foram redigidas? De qualquer modo, não nos parece muito verosímil tal asserção, uma vez que no início de cada sessão se procedia à leitura e aprovação da ata da sessão precedente. Talvez a razão estivesse na clara demarcação dos vários anos, dando a ideia real de que houvera um largo período de tempo em que a sociedade não reunira ou estivera em menor atividade.
Cabe aqui dizer novamente que se desconhecem os estatutos precisos deste gabinete que, no entanto, os elaborou e aprovou logo na primeira sessão posterior à sua instalação – na sessão de 13 de janeiro de 1836. Sabe-se explicitamente que a assembleia deveria reunir todos os meses, ao fim da tarde do último dia de cada mês, o qual, se fosse domingo ou feriado, deveria fazer antecipar a reunião para o dia anterior.
Uma possível descoberta dos citados estatutos muito viria aclarar toda a forma de processamento da dita sociedade, limitando-nos assim nós a reunir aquilo que separadamente se recolhe nas atas das diversas sessões que formam ao todo, entre 1835 e 1848, cento e treze, entre ordinárias e extraordinárias.
Quanto ao ano da sua extinção como sociedade, também não se sabe ao certo. Temos apresentado o ano de 1848 como sendo o último, baseando-nos no facto, já devidamente ressalvado, de a última sessão, cuja ata se encontra no respetivo livro, ser a de 20 de fevereiro de 1848.