No último post que aqui deixei sobre a viagem do rei D. Sebastião, assinalei um pormenor de linguística que achei curioso porque já tenho pensado sobre este tema: o cronista escreveu que “ouviu El-Rei missa na Albufeira; (…) Veio El-Rei pela Quarteira”.
Trata-se da velha questão de haver topónimos (nomes de lugares/povoações) que são conjugados simplesmente com a preposição ‘em’ e outros com a contração da preposição e o artigo definido ‘o/a’. No caso vertente, as duas localidades na crónica foram designadas como a Albufeira e a Quarteira, o que atualmente se não usa no que se refere a Albufeira. Mas em relação a Quarteira, subsiste a dúvida: enquanto os algarvios dizem sempre “em Quarteira”, os turistas do norte do país dizem habitualmente que estão de férias “na Quarteira”. O que tem levantado algumas curiosas reações, nomeadamente nas redes sociais.
Eu não sou linguista, nem tenho pretensões a tal. Portanto corro aqui o risco de ser interpelado como foi o sapateiro por Apeles (“não vá o sapateiro além da chinela”). Mas interesso-me um pouco pela etimologia (origem das palavras), talvez porque no meu percurso escolar me entretive alguns anos com o Latim e o Grego. Mas nem isso aqui me ajuda, porquanto o Latim clássico, que forma o substrato da língua portuguesa não usa(va) o artigo definido.
Já em diversas vezes tenho perguntado qual é a regra gramatical que responde à questão que ponho, a pessoas que disto sabem mais do que eu, mas até agora nunca obtive uma resposta totalmente satisfatória.
Do que tenho pensado e ouvido, formulei uma hipótese que, não é geral, muito longe disso, mas que abrange muitos topónimos:
– Quando o topónimo corresponde a um nome comum, geralmente aplica-se a contração da preposição com o artigo definido. Alguns exemplos: no Porto; na Figueira; nas Alcáçovas; na Sertã; na Régua; na Beira; no Fundão; na Guarda; no Cais do Sodré; na Costa da Caparica; no Areeiro; no Ameixial; etc.;
– Quando não corresponde a um nome de uma coisa concreta, utiliza-se somente a preposição, o que me parece ser a forma mais comum. Alguns exemplos: em Lisboa; em Loulé; em Portimão; em Coimbra; em Braga; em Beja; em Évora; em Viseu; em Molelos; em Viana; em Tavira; etc.
O problema é que há imensas exceções em ambos os casos e, portanto, isto não pode ser uma regra geral. Alguns exemplos contra um e outro:
- em Lagoa; em Faro; em Lagos; em Albufeira; em Chaves; em Barrancos; em Castelo Branco; em Manteigas; em Espinho; em Pombal; em Angra; em Armação; em Pera; etc.
- no Alportel; no Montijo; na Raposeira; na Covilhã; no Cercal; no Crato; na Goncinha; na Tor; na Foia; etc. etc.
Portanto, esta é apenas uma hipótese de regra que não satisfaz completamente as necessidades. Mas também se costuma dizer que não há regra sem exceção (desde que as exceções não sejam tantas quanto a regra…).
Quanto ao caso concreto de Quarteira, as referências históricas mais antigas, da era cristã, identificam o topónimo de uma forma indefinida:
– O Foral de Loulé, dado por D. Afonso III, em 1266, de que só se conhece (na Torre do Tombo) uma cópia manuscrita dos séculos seguintes (XIV ou XV), num tempo em que os documentos oficiais ainda eram em Latim (tardio), refere-se a Quarteira por duas vezes mas, em ambos os casos, a palavra Quarteira é identificada já à portuguesa, antecedida da preposição de (indicando posse, pertença), e não declinada à maneira latina (no caso seria no genitivo), do seguinte modo:
“(…) Item retineo mihi et omnibus successoribus meis omnia molendina de Quarteyra constructa et construenda. (…) Et similiter retineo omnes hereditates de Quarteyra pro meo regalengo”. [Tradução quase desnecessária: “Igualmente retenho para mim e todos os meus sucessores todos os moinhos de Quarteira construídos e a construir. (…) E igualmente retenho para mim todas as herdades de Quarteira para meu reguengo”].
– Cerca de trinta anos depois, na carta de povoamento de Quarteira, já em Português arcaico, que o rei D. Dinis, em 1297, faz a Martim Mecham, diz-se que este “veo a mim e pediu que eu lhy desse o meu logar que chamam quarteira com todos seus termhos per a ssi e pera cinquoenta pobradores omeõs” [povoadores homens].
– No século XVII temos também a descrição de Alessandro Massaii, o famoso arquiteto e engenheiro militar napolitano que, ao serviço da Coroa filipina redigiu a sua “Descripção do Reino do Algarve…“, de um levantamento, que fez em 1617/18, das condições militares das povoações algarvias, e em que se pode ler:
“Relação da villa de Loulé
Está situada em sitio alto, e bem acastelada e sercada de muros (…) Dista do mar legoa e meia e na fronte della, na sua costa está hua armassão de atuns que se diz o zimbral que della tratei nas descripção de faro tem hua boa légua de praia que nella se pode facilmente embarcar e desembarcar a pé enxuto, e ficarem as embarcações a vado por onde a sobredita praia está muito sujeita a hum assalto ou bateria de mão, estando mais que na sobredita praia que se diz de quarteira não há mais do que hua torre que se diz almenara (…)”
– No meio destas três citações, está assim o texto discordante do citado cronista João Cascão (de quem pouco ou quase nada se sabe sobre a sua pessoa, ou naturalidade, segundo o Prof. Francisco de Sales Loureiro), que em 1573 utilizou, como vimos, as expressões “na Albufeira” e “pela Quarteira”. Ele era o cronista do Infante D. Duarte, que era neto do Rei D. Manuel e primo de D. Sebastião, portanto um homem próximo da Corte, e muito provavelmente não era algarvio. Não conheço mais nenhum documento antigo que se refira a Quarteira desta forma.
Em síntese, os documentos históricos são maioritariamente para o lado do em Quarteira. Embora não de uma forma absoluta e inequívoca, avalizam o modo atual dos algarvios se referirem àquela cidade.
Ligando à minha hipótese acima apresentada, precisaria de saber qual a origem da palavra Quarteira: se está ligada ao nome da mítica povoação de Carteia, ou apenas a uma realidade mais comum em que quarteira de algum modo se relaciona com um qualquer “quarteiro”, como antigamente se designava a quarta parte de um moio (medida de cereais correspondente a quinze alqueires), ou um tributo pago nessa quantidade, e assim leve alguns, por aproximação, a achar que podem dizer “a Quarteira”.
Assim, no momento atual penso que a utilização da forma algarvia de expressão baseia-se na tradição histórica e oral, e a das pessoas do Norte numa forma que eu designaria de facilitação linguística, talvez por a palavra Quarteira parecer referir-se a uma coisa concreta e próxima, sem ter em conta a tradição local. Ora eu penso que nestes casos deveria prevalecer o uso local e regional, que aqui é consensual entre todos os algarvios. Porque são eles que diariamente utilizam a palavra e porque isso corresponde a uma tradição histórica. Como diz o povo “cada roca com seu fuso, cada povo com seu uso”.
Fica aqui uma reflexão para quem poder e quiser ocupar-se um pouco com estas coisas. Se alguém tiver mais certezas, pois eu continuo interessado em saber.