Para concluir a abordagem à viagem de D. Sebastião pelo Alentejo e Algarve, em 1573, apresentamos hoje a parte que respeita a Quarteira e Loulé.
Quase três semanas depois de ter estado em Almodôvar, seguindo por Ourique, Messejana, Colos, Odemira, Odeceixe, Aljezur, Lagos, Sagres, Alvor, V. N. Portimão, Monchique, Silves, Alcantarilha e Albufeira, o Rei D. Sebastião chegou ao termo (concelho) de Loulé, passando por Quarteira, antes de entrar na Vila. Em todas estas terras foi calorosamente recebido, principalmente em Lagos, talvez com exceção de Silves, cuja Câmara não terá gostado que D. Sebastião tivesse elevado Monchique (que pertencia ao seu termo) à categoria de vila.
A viagem pelo concelho de Loulé é conhecida do grande público, porquanto a alcaidaria do castelo de Loulé desde há algumas décadas que ostenta uma lápide a assinalar o feito, e a Estalagem da Cegonha – Vilamoura refere também no seu site promocional a passagem do rei pelas instalações do que era então o solar do Morgado de Quarteira.
Este morgado tinha sido criado em 1413, com D. João I, o qual cedeu a herdade que pertencia à Coroa desde o foral de Loulé (1266) a Gonçalo Nunes Barreto, por troca com um senhorio que este tinha em Cernache – Coimbra (então chamado Cernache dos Alhos, não confundir com Cernache do Bonjardim – Sertã).
Na data desta visita era senhor do Morgado de Quarteira Rui Barreto, penso que Rui Nunes Barreto, de seu nome mais completo, e que seria o 7º titular do morgado. Desempenhava também as funções de Alcaide-Mor de Faro. Ali foi a comitiva recebida com um lanche, uma pequena corrida de touros e uma rápida montaria.
Sobre a estadia em Loulé destacam-se a presença da comitiva na alcaidaria do castelo, as danças da receção em sua honra, a beleza das raparigas, a descrição das ruas da vila, e ainda uma visita ao mosteiro/ convento de Santo António (de frades franciscanos da Província da Piedade, o primeiro, mais abaixo do que o atual, que teria sido fundado em meados do séc. XVI por Nuno Rodrigues Barreto e D. Leonor de Milão, pais da camoniana D. Francisca de Aragão, e habitado até 1692, quando os frades passaram para o segundo), para além do facto de não ter havido corrida de touros, porque a comitiva sairia logo no dia seguinte, pela manhã. Curiosa é ainda a frase “veio El-Rei pela Quarteira” que, presumindo que foi bem transcrita do original que se desconhece, seria um dos primeiros registos escritos de fazer anteceder o topónimo pelo artigo definido (“pel’a ou n’a Quarteira”). Tal como na referência ao rei ouvir missa “na Albufeira”.
Transcreve-se assim a passagem pela Quinta de Quarteira e por Loulé, na descrição do cronista João Cascão, publicada por Francisco de Sales Loureiro em “Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve” – Livros Horizonte – 1984 – pág. 111/112, em grafia atualizada e com as minhas notas entre parêntesis retos:
“5ª feira, 29 de janeiro [de 1573], ouviu El-Rei missa na Albufeira; almoçou [pequeno-almoço] e partiu às 9 horas para Loulé, que são três léguas de jornada. Veio El-Rei pela Quarteira, quinta [morgado de Quarteira – atual Vilamoura] de Rui Barreto, apeou-se nas casas da quinta e no pátio correram-lhe umas vaquinhas e um touro.
Esteve-os vendo de uma janela, e mandou deitar o Couto [o cortesão Zuzarte do Couto] no curro; mandou-lhe fechar as portas, por que não tivesse onde se recolher, e de medo esmoreceu. El-Rei mandou-o então tirar do curro. El-Rei comeu algumas coisas doces sobre que bebeu, e um criado de Rui Barreto andou pelos fidalgos, dando marmelada e púcaros de água, e à gente miúda se deu todo o vinho que quiseram beber. Gastar-se-ia nisto hora e meia; chegou o Senhor D. Duarte [o Duque de Guimarães] por vir um pedaço atrás de El-Rei, já no cabo dos touros. Pôs-se El-Rei a cavalo e foi montear uns porcos, que lhe tinham emprazados; fez-se a armada ao redor dum paul, e à batida saíram três porcos e alguns veados. Correu El-Rei e Rui Barreto a um porco; Rui Barreto o errou duas vezes e El-Rei lhe deu duas lançadas grandes de que o matou. E o Duque de Aveiro e o Conde da Vidigueira saíram a outro que mataram, e o terceiro deixaram ir por ser muito pequeno. Acabado o monte [montaria], foi El-Rei ver as éguas da quinta, que dizem que passam de 50. Vistas, pôs-se a caminho de Loulé, meia légua do qual o veio receber o juiz, com perto de 100 de cavalo com sua bandeira, lanças e adargas, e três bandeiras da Ordenança [forças militares territoriais], que fizeram a salva de arcabuzia [de arcabuz – espingarda da época].
Mais perto da vila, receberam-no com uma dança de homens, e outra de mulatas, que dançavam em extremo, e cantavam a seu modo muito arrazoadamente. Acompanhado de tudo acima dito, até à porta do castelo por onde entrou, e nela o receberam os Vereadores. Dizem que o Vereador mais velho estava para lhe dizer algumas coisas a modo de fala, e passou El-Rei tão depressa, que não houve comodidade para conseguir seu desejo. El-Rei recolheu-se nesta ordem para as casas do Alcaide-Mor, que são no castelo.
O Senhor D. Duarte, depois de deixá-lo nelas, foi ver o castelo e a fortaleza da Vila, a qual, entrando El-Rei, fez salva da artilharia. E foi também ver fora da Vila um mosteirinho de Capuchos da advocação de Santo António [seria o primeiro convento de Santo António, um pouco mais abaixo do atual, que viria a ser abandonado em 1692, quando estava muito destruído]. Recolhido o Senhor D. Duarte a sua casa, vieram beijar-lhe as mãos os Vereadores. E as mulatas vieram à noite cantar à porta, e o Senhor D. Duarte lhes fez mercê; e mandou visitar a mulher de Gonçalo Nunes Barreto. Terá esta Vila 700 até 800 vizinhos [casas de família]. É muito bem assombrada, e com muito formosas ruas. A, por onde El-Rei entrou, estava arrazoadamente aparamentada, e com algumas moças muito bonitas pelas janelas, que não haviam inveja às de Vila Nova [de Portimão]. Estava esta Vila muito bem provida de mantimentos e tinham touros para correr a El-Rei, se quisera estar ao segundo dia.
A Alcaidaria-Mor desta Vila é do Senhor D. Duarte e fez mercê dela a Gonçalo Nunes Barreto, [da mesma família de Rui Barreto] que é o Alcaide-Mor.
6ª feira, 30 de janeiro, entre as 6 e as 7, foi El-Rei ver o Mosteirinho de Santo António, e o Senhor D. Duarte com ele, o Duque de Aveiro e os fidalgos. Às 7 horas dadas, partiu para a cidade de Faro, duas léguas de jornada.”