Conforme indiquei, irei começar pela passagem do Rei D. Sebastião por Almodôvar, em janeiro de 1573.
Como introdução devo referir que D. Sebastião nesta data ainda tinha 18 anos (faria 19 anos alguns dias mais tarde, durante esta viagem, precisamente no dia que chegou a Lagos – 20 de janeiro), vila importante que ele viria a elevar à categoria de cidade e que, em conjunto com os outros lugares henriquinos, viria a ser um lugar muito especial para si, sendo a recíproca também verdadeira, simbolicamente representada na icónica estátua de João Cutileiro.
O Senhor D. Duarte, como é tratado na crónica, era o Infante D. Duarte, 5º Duque de Guimarães e primo do Rei, porque era sobrinho do seu avô D. João III, sendo então o Condestável do Reino, com 32 anos de idade, e de quem João Cascão era cronista pessoal.
Na comitiva, como era normal, vinham diversas figuras gradas da Corte, tais como: o Duque de Aveiro, os Condes da Vidigueira, do Vimioso e de Sortelha; altos funcionários: Alferes-Mor; Almotacé-Mor; Estribeiro-Mor; Reposteiro-Mor; Corregedores da Corte; Secretários de Estado; Vedores; Capelão- Mor; para além de vários cortesãos e moços fidalgos.
Do texto destaco, em sumário, o temporal na viagem entre Castro Verde e Almodôvar; as dificuldades logísticas do alojamento em Almodôvar, em casas mal isoladas para a chuva, depois de um dia de temporal, com a curiosa expressão “mal em campo, pior em vila”; o pormenor da subida especulativa do preço do sabão na oportunidade, resolvido pelo Almotacé-Mor (o magistrado da Corte que tratava dos abastecimentos, preços, taxas e impostos); e a habitual corrida de touros com que a comitiva era geralmente brindada em cada localidade visitada. De resto, não farei mais comentários, porque o texto é bastante percetível.
Passo então a citar a descrição do cronista João Cascão, publicada por Francisco de Sales Loureiro, em “Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve” – Livros Horizonte – 1984 – pág. 87/89, em grafia atualizada, com algumas notas de esclarecimento da minha autoria, entre parêntesis:
(…) “5ª feira, 8 de janeiro [de 1573], depois de El-Rei [D. Sebastião] ouvir missa pela manhã cedo, e almoçar [pequeno–almoço, em Castro Verde], partiu para Almodôvar. São três léguas de jornada, e foi o pior dia de chuva e o pior caminho de lama e atoleiros, que podia ser; não faltou muito grande vento e não faltaram duas muito grandes ribeiras e uma delas de tamanha corrente que parecia querer levar os homens e as bestas. Em cada uma destas fazia El-Rei e o Senhor D. Duarte aos de cavalo que pusessem às ancas os de pé; houve muitas bestas caídas em atoleiros, e outras nas ribeiras. E um moço da guarda-roupa de El-Rei, por nome Manuel da Fonseca, caiu na pior ribeira, sendo El-Rei presente. E correu muito trabalho um grande pedaço que esteve na água, ele e o cavalo sem se poderem erguer, e alguns de cavalo se deitaram à ribeira a lhe acudir e El-Rei o cometeu, também prouve a Deus que saiu, mas mal enxuto.
A guarda-roupa do Senhor D. Duarte passou muito trabalho e foi todo de Manuel de Amaral, e de Luís Veloso, aos quais caíram as azémolas quatro vezes. E eles, metidos na lama até aos joelhos, com elas, carregavam as caixas às costas e estando neste naufrágio passou o Conde do Vimioso e disse, compadecido de os ver em tal tormenta, que tomara ver ao Senhor D. Duarte um par de boas Comendas, que dera a cada um sua, por tamanho trabalho.
Mas, ainda os louvara mais, se adivinhara que o seu fato lhe ficara aquela noite na charneca e se havia de ver como outros sem ele, a que não chegou aquela noite. E os lobos saltaram com as bestas de maneira que, até pela manhã, não puderam seus donos dar com elas nem carregar o fato.
Meia légua antes de chegar El-Rei, com aquela grande tormenta, o vieram receber o Juiz, Vereadores, e alguma mais gente de cavalo, e lhe trouxeram um veado o qual lhe disseram que era muito bravo, e tinha esperado por ele um grande pedaço à chuva.
El-Rei o quis ver correr aos da terra, e por mais recontradas que lhe deram, não se quis bulir.
Veio Sua Alteza se recolhendo ao lugar; à entrada dele a desordenança muito molhada e muito sem sabor; e entrando no lugar depois e fazer oração na igreja, como costumava em todas, foi para as suas casas, às quais o Senhor D. Duarte, e as dos mais, eram tais e tão chuvosas que se pudera por elas dizer ou por eles: mal em campo, pior em Vila.
No aposento do Senhor D. Duarte não tão somente não havia casa em que não chovesse, mas não havia coisa enxuta nelas, e houve votos de se fazer a cama do Senhor D. Duarte numa loja grande das casas, porque além de chover na câmara estava muito danificada, e os que o notaram foi D. Diogo de Lima, e pedro de Andrade, mas o Senhor D. Duarte não consentiu. Neste lugar e em outros, por onde El-Rei passava, se punham muitas pessoas de joelhos e levantavam as mãos como que faziam, oração, e algumas mulheres havia que batiam nos peitos. Também se vendeu neste lugar o sabão em casa de um Cristão-novo, e passando um homem da Corte com um pouco lhe comprara, na mão, pela porta do Almotacé-Mor, ele lhe perguntou o que justara, o homem respondeu que quinze reais, e era para se poder lavar uma camisa. E o Almotacé-Mor fez experiência com pesos a quanto chegava o arrátel daquela maneira, e achou que passava de 9 vinténs e castigou o homem muito bem.
Pus aqui isto para se verem os trabalhos e necessidades que pelo caminho se passam que até lavar uma camisa custa tanto trabalho, também posso por que por almotaçaria se mandava consertar o calçado.
6ª feira, 9 de janeiro [de 1573], esteve El-Rei em Almodôvar e pela manhã ouviu missa, e o Senhor D. Duarte e o Duque [de Aveiro] com ele. Acabando El-Rei de jantar [atualmente seria almoçar] se pôs a cavalo com o Duque e foi ao campo. Lá esteve pouco por ter aqueles dias touros, aos quais andou e o Senhor D. Duarte, e o Duque [de Aveiro] e o Conde do Vimioso.
Houve algumas sortes boas a cavalo, e se não houvera medo lançarem-me por suspeito, dissera quão bem o Senhor D. Duarte andou, e se me deram o juramento dos Santos Evangelhos, dissera que não podia outrem andar melhor, nem mais gentil-homem, e não faltaram muitos que nesta matéria sustentem minha verdadeira opinião, e em todos muito certa. El-Rei acudiu maravilhosamente e com muito fervor a um moço da Estribeira seu, que tomou o touro, e lho tirou das mãos, e ficou disto muito contente, e lançou o cavalo. Depois de gastar El-Rei neste exercício um grande pedaço, se recolheu a sua casa com o Senhor D. Duarte e o Duque de Aveiro e o Conde do Vimioso, e mandou sair novos touros para outros toureiros, os quais são os seguintes:
O Alferes-Mor e D. Rodrigo Lobo em cavalos do Duque de Aveiro e Luís Álvares de Távora, o moço, em um seu. Deram em touros tão mansos que não se ofereceu fazerem alguma sorte, mais do que uma em que o Alferes-Mor perdeu o barrete e El-Rei se desenfadou.
Sábado, 10 de janeiro, ouviu El-Rei missa, muito antemanhã. Antes de romper a alva, partiu da forma costumada e veio jantar [almoçar] a Ourique.”(…)