(…) E então que El-Rei D. Afonso III recebeu estas cartas de seu sogro que a Rainha sua mulher lhe trouxe, mandou logo aparelhar suas gentes e foi-se logo com grande pressa ao Algarve, e foi por Beja e daí a Almodôvar, do campo de Ourique, e passou a serra pelas Cortiçadas, e encaminhou direito a Farão do senhorio do miramolim rei de Marrocos; e tinha a vila por ele um alcaide que tinha o nome de Aloandre, e estava aí um almoxarife de El-Rei que tinha o nome de Alcabrarão; estes haviam grande corrida de gentes e mantimentos porque dentro do alcácer estava uma fusta [barco] por um arco grande que era feito no muro e tiravam aquela fusta cada vez que queriam, e mandavam recado a seu Rei Miramolim, e traziam nelas gentes e todas as coisas que tinham necessidade; e porque o lugar era bem fortalecido de armas e de tudo o que lhe cumpria, estavam os Mouros muito esforçados de maneira que prezavam muito pouco os Cristãos.
Quando o Mestre D. Paio Peres Correia1, que era vassalo de El-Rei D. Afonso, soube que ia lá, foi aguardá-lo entre Loulé e Almodôvar, e na vila de Salir e ali se viu El-Rei com ele, e as gentes todas juntas foram cercar Farão e puseram o arraial sobre ele, e repartiram seus combates desta maneira:
– o combate de El-Rei D. Afonso foi no castelo, e um lanço da vila até uma porta que agora chamamos das freiras;
– e o combate do Mestre, deste lanço até à porta da vila;
– e mandou El-Rei um Rico-homem, que tinha nome D. Pero Escrenho, em outro lanço do muro até uma torre que depois chamaram de João de Aboim;
– e este João de Aboim tinha outro lanço, da torre que depois chamaram de seu nome até ao combate do alcácer de El-Rei.
Fora estas capitanias, eram aí outros com eles, a saber: D. Fernão Lopes, prior do Hospital; o Mestre de Avis; o Chanceler- mor D. João de Unhão; Mem Soares e João Soares; e Egas Lourenço. E desta maneira tinha El-Rei combatida a vila muito fortemente, de dia e de noite, e mui poucas vezes lhe davam lugar; e tomou-lhe El-Rei o mar com a frota e atravessou-lhe no canal do rio navios grossos muito bem armados e ancorados da parte de fora, contra o mar, porque se algumas galés de mouros viessem que lhe não pudessem fazer mal e lhes fosse embargada a parte do rio; e assim ficou o lugar todo cercado ao redor.
Quando os Mouros viram que o porto de mar assim era tomado e que El-Rei assim os afincava tanto de cada parte, posto que bem se defendessem, entenderam que lhes não havia de servir de nada; e andando em acordo, falou El-Rei um dia com o alcaide Aloandre e com o almoxarife Alcabrarão, que eram os maiores do lugar, como já vos dissemos; e foi El-Rei com eles falando até que se acolheram dentro do alcácer, e levando os que quis, que seriam até dez cavaleiros, e o castelo foi livre dos mouros e buscado todo pelos cavaleiros de El-Rei; e não ficou com eles gente nenhuma, salvo estes dois mouros que deixámos dito.
E isto não fez El-Rei saber ao Mestre nem aos outros que tinham os combates; e estes, não sabendo disto, foi El-Rei achado menos e houvera de ser grande mal, e por El-Rei não faltar do que tinha prometido, foram notícias ao Mestre, e a outros filhos de algo do arraial, que cuidaram que os mouros do castelo tinham feito algum dano a El-Rei, e que o mataram ou o prenderam; e por isso, levantaram um ruído tão grande, que por força e a mal de seu grado, os mouros não lhes atirando setas nem pedras, os Cristãos passaram a cava e a barra e juntaram-se com um muro; e a gente do Mestre carregava lenha à porta da vila para lhe porem fogo, e por esta razão padeceriam muitos dos Cristãos.
E quando El-Rei viu aquele ruído admirou-se muito do que podia ser, e como soube o que era, saltou em cima de uma torre, e mostrou as chaves na mão, que já tinha o castelo, e mandou dizer ao Mestre e aos outros que estivessem quietos e se mantivessem fora, que já era em acordo com os Mouros.
O mouro Alcabrarão saiu do castelo e então mandou El-Rei apregoar pelo arraial que ninguém fizesse mal a mouro ainda que andasse fora entre eles, nem entrassem pelas portas da vila, ainda que abertas as achassem, salvo o Mestre e os outros capitães que entrassem dentro com aqueles que quisessem, e estivessem sobre as portas do combate que cada um tinha.
E o acordo que El-Rei fez com os Mouros foi desta maneira: que eles lhe fizessem aquele mesmo foro que em todas as coisas faziam ao seu rei, e que eles houvessem todas as suas casas, vinhas e herdades da mesma maneira, e que El-Rei os defendesse e amparasse, assim dos Mouros como de outras quaisquer gentes que mal lhes fizessem; e os que quisessem ir para alguns lugares de mouros, que se fossem livremente com todas as coisas; e que os cavaleiros mouros ficassem por seus vassalos e que andassem com El-Rei quando lhe cumprisse, e ele que lhes fizesse bem e mercês.
Desta maneira houve El-Rei a vila de Farão no mês de Janeiro da era de mil e duzentos e trinta e oito anos2.
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1 Mestre da ordem Militar de Santiago da Espada, que se notabilizou nas conquistas das vilas algarvias
2 Mais uma vez a Crónica, escrita muitas décadas depois dos factos, não é precisa nas datas e locais: Faro foi tomada aos Mouros em 1249.
Grafia atualizada.
*Segundo a “Crónica da Conquista do Algarve”, de autor ainda não completamente identificado, provavelmente do séc. XIV, publicada em 1792, e republicada, com comentários e notas, por José Pedro Machado – Separata dos Anais do Município – VIII – Faro 1979.