11. A economia louletana no período cristão medieval

Já vimos que depois da reconquista cristã o Algarve terá sofrido um grande golpe nas suas estruturas económicas, principalmente no comércio marítimo que o território desenvolvia com o Mediterrâneo, em ambas as margens, quer na parte peninsular, quer no Norte de África. Foi preciso encontrar outros meios e áreas de desenvolvimento para fazer progredir a economia local.

Naturalmente era necessário prover o abastecimento de géneros alimentares para o sustento das populações que aqui viviam e das que aqui chegaram, vindas do Norte, em razão de povoamento e de defesa do novo território anexado.

O concelho de Loulé, como um dos maiores e dos primeiros a serem reorganizados sob a nova ordem politico- religiosa, vai ter um papel preponderante nessa reestruturação económica. O seu extenso território, a sua complementaridade entre diversas sub-regiões (serra, barrocal e litoral) permitiram às suas gentes produzir o essencial para o seu sustento e ainda para as povoações limítrofes (Faro, Albufeira, por exemplo).

O próprio foral de Loulé identifica algumas áreas económicas de interesse relevante do termo de Loulé, que já vinham do período anterior, no domínio árabe. As frequentes posturas medievais que a vereação da Câmara emitia e que conhecemos pelas atas das respetivas reuniões também nos fazem supor o pulsar da vida económica local com grande detalhe. De todo o conjunto de atas de 1378 (que marcam as mais antigas Atas Municipais do país) destaco a da sessão de 21 de abril que, em face de alguma desorganização existente até aí, procurou sistematizar as posturas que deviam ser cumpridas no concelho. A Prof. Ângela Beirante (obra citada), das suas pesquisas nos diversos documentos louletanos dos séc. XIII, XIV e XV, ajuda-nos a caracterizar essa vida económica:

A agricultura caracteriza-se pela produção de cereais, dos quais era normal o Algarve ter um deficit crónico, e a sua importância na alimentação humana e animal justifica as elevadas penas que seriam aplicadas a quem causasse danos às searas. Junto à vila pensa-se que os campos mais utilizados naos cereais seriam os da Campina de Cima e de Baixo, a Leste e Sudoeste da mesma, mas também outras zonas do concelho seriam cultivadas, fazendo de Loulé uma grande zona cerealífera do Algarve.

As hortas e ferragiais eram propriedade vedadas geralmente, cujas cercas deviam ser mantidas em bom estado. Existiam várias à volta da vila, em diversas partes, beneficiando da abundância de água da zona. Cultivavam-se legumes, hortaliças e frutas, nas hortas e cereais nos ferragiais. Utiliza-se a rega por meio de noras ou, junto à vila, aproveita-se as linhas de água locais – Cadoiço, Talvegue d’El-Rei, Carcavai (ou Cagavai, como parece ser conhecida na época medieval), em regime de repartição de águas pelos vizinhos, e coordenados com os moinhos de água que funcionavam nas mesmas ribeiras. O foral de Loulé refere explicitamente a horta do rei, como tendo pertencido temporariamente a D. Martim Gil (o Mordomo da Corte) e que ficava junto ao muro Sul da vila. Esta horta ficaria também famosa por, em 1404, o rei D. João I a ter arrendado ao mercador genovês João da Palma1 para nela plantar cana-de-açúcar, o que seria a primeira cultura em Portugal desta planta trazida das ilhas mediterrânicas. Também há referências à Horta Nova, topónimo que ainda existe. Ainda importante para muita gente, pelos muitos hortejos, seria pelos séculos fora a encosta sudoeste da vila, irrigada pelo Talvegue d’ El-Rei e o Cadoiço.

A cultura da vinha e a correspondente produção de vinho também foi muito praticada. Eram comummente contíguas às hortas e ferragiais, mas também as havia dispersas. O rei D. Afonso III fala delas no foral e reserva para si 40 arençadas2, bem como duas adegas em Loulé. As vinhas régias ficariam em Betunes, que seriam trabalhadas por Mouros forros, conforme o respetivo foral e ainda em Quarteira, bem como outras zonas do concelho propícias a tal cultura: Tor, Nave do Barão. Geralmente as vinhas eram propriedade cercada. Também sabemos do foral que o rei reservava para si o direito do relego (direito de vender o seu vinho antes dos outros), durante os primeiros três meses do ano. Mas não só o rei produzia vinho. Haveria muitos pequenos produtores que em conjunto teriam uma produção significativa. Também inferimos a importância deste cultivo, mais tarde, quando D. Afonso IV isentou os produtores de Loulé do pagamento da dízima da madeira que comprassem para o fabrico de tubas, tonéis e pipas, bem como para reparação das suas casas e adegas3.

A produção de figo era outra grande riqueza local. Os figueirais eram protegidos como pomar de sequeiro, também geralmente cercados, mas também em campo aberto. Mais uma vez o rei ficara com um grande figueiral na zona do Ludo, no litoral. Tradicionalmente o figo era conservado e substituía o pão nos períodos de carestia de cereais até um período muito tardio na população do Algarve.

Os olivais também eram muito acarinhados, muitas vezes junto às terras de pão. O corte de uma oliveira carecia de autorização da Câmara. A mancha olivícola do concelho era maioritariamente a sul da ribeira de Algibre ou da Tor.

A Norte, na zona da serra, encontrava-se especialmente o arvoredo endémico da região, tal como a azinheira, o sobreiro e o carvalho, sendo que curiosamente não aparecem nas posturas referências à amendoeira e à alfarrobeira. Estas zonas serviam maioritariamente para o abastecimento de lenha.

Ainda é de referir o espartal de Loulé que seria uma coutada do concelho que seria parcialmente arrendado ficando parte no rossio, como acontecia com o espartal de Silves. Colhia-se a partir de abril e servia para o fabrico de seirões, importantes para o transporte de mercadorias, e tinha uma determinada capacidade. Assim o seirão cavalar devia levar 4 cestos de uvas, figos ou cal e o seirão asnal (burro) levava 3.

Quanto à pecuária também era muito citada nas posturas medievais:

As vacas, éguas, ovelhas, cabras e porcos faziam parte da ocupação animal do concelho, em maneio extensivo, sempre tendo em atenção os possíveis danos que podiam infligir nas produções agrícolas. Andavam em rebanho, controladas por pastores responsabilizados pelos seus possíveis danos. Especialmente importante era a manada comum de gado bovino dos habitantes da vila – a adua, vigiado pelo adueiro4, homem responsável escolhido para exercer a função durante um ano a partir de 1 de abril.

Todo o gado, consoante as estações do ano, assim se deslocavam pelos diversos almargens/almarjões (Almargem de Bilhas, Vale Telheiro) do território do concelho. A zona litoral e onde havia mais culturas eram geralmente vedadas aos rebanhos. As cabras, mais daninhas sobre as culturas agrícolas eram maioritariamente criadas na zona da serra.

A apicultura fazia-se por todo o concelho, mas não se podiam instalar colmeias a menos de uma légua de distância da vila, nem perto das vinhas.

Na zona costeira, o reguengo de Quarteira, reservado pelo rei logo no foral, foi alvo de um aforamento coletivo em 1282, no tempo de D. Dinis5. Compunha-se de terras de pão, vinhas, matos, pauis, almargem, terras maninhas e vários moinhos (um deles construído pelo judeu Moisés Vidal que era foreiro em 12936. Também aqui o genovês João da Palma obteve carta de coutada7para a plantação de cana-de-açúcar que já experimentara em Loulé. Não deve ter durado muito tempo esta iniciativa porque, logo em 1413, o rei troca o reguengo pelo senhorio de Cernache do Alhos – Coimbra, com Gonçalo Nunes Barreto8. Nas atividades do litoral destacaremos as pescas, nomeadamente da baleia, numa tradição que já vinha do tempo dos Mouros, na costa de Quarteira. Esta atividade também foi referida no foral de Loulé e, como as outras já indicadas, também ficou reservada à propriedade do rei. Outras pescarias também se terão desenvolvido no litoral, tal como a pesca do atum, de que temos referências no séc. XVII sobre a armação do zimbral. Embora o foral não o refira explicitamente, a designação comum dos aparelhos de cerco para a pesca deste peixe – as almadravas –sendo um nome de origem árabe, indica-nos que já havia tradição desta pesca desde aqueles tempos. A pesca de outros peixes mais miúdos (sardinha, carapau, raia, corvina, cação, linguados e sáveis), por maioria de razão, também deveria ser praticada, sendo referidos na ata da vereação de 17 de março de 1378.

Também no litoral se produzia outro artigo extremamente importante para a economia e vida adas pessoas – o sal marinho – de que o rei igualmente reservou o monopólio da produção e venda, como consta do foral de 1266.

Sobre o comércio, distinguiremos entre o interno e o externo. Daquele, destacaremos a importância da feira de Loulé e a ação dos almocreves.

Sobre a feira podemos dizer que foi criada por D. Dinis, no ano de 1291, sendo a primeira do Algarve, e existindo apenas no baixo Alentejo a de Beja (1261) e Ourique (1288). Realizava-se em setembro, pelo S. Cipriano (dia 26) e durava 15 dias, antes e depois daquela data, em que todos aqueles que iam à feira estavam contemplados com a chamada “paz da feira”, garantindo-lhes segurança durante o tempo da mesma (oito dias antes, os quinze dias da sua duração e oito dias depois). Ninguém podia ser penhorado por qualquer dívida anterior durante esse tempo. Pagariam todos, naturalmente ao rei as devidas portagens e outros direitos. E as autoridades concelhias ficavam encarregues de assegurar essas garantias.  Era uma forma de incentivar o comércio e a economia locais, com interesse também para o rei.

Com carácter mais permanente existiam pontos de venda de produtos para o abastecimento das populações que no período medieval eram designados pelo açougue, tendas e fangas9.

Os almocreves eram homens que transportavam pelo interior serrano e para o Alentejo os produtos locais, em dorso de animais de carga, através das veredas difíceis da serra algarvia. Levariam do litoral fruta, vinho, vinagre, sal e peixe salgado; e trariam para aqui trigo e outros cereais. Na vila funcionavam igualmente as lojas de produtos alimentares e roupa, bem como o mercado público, com açougues e outras tendas, também referidas no foral.

Já quanto ao mercado externo, e apoiando-nos nos Prof. Luís Adão da Fonseca e José Augusto P. S. M. Pizarro (obra citada) daremos aqui a devida importância à exportação de fruta, especialmente de figos, passas e vinho, tal como o sal, o peixe salgado, os couros, a cortiça e o azeite. Nas importações, destaque para o ferro, os cereais e o próprio pão, dadas as tradicionais deficiências cerealíferas do Algarve, de que Loulé, apesar de tudo, não era das piores situações, porque o seu interior provinha grande parte das suas necessidades. Comerciava-se com a Andaluzia, Marrocos, Itália, França (La Rochelle), Inglaterra e a região Hanseática, mais distante. O porto mais utilizado para os produtos de Loulé seria o de Farrobilhas10, onde se carregavam os produtos que depois seguiam pelo de Faro. Os barcos seriam estrangeiros ou portugueses (Lisboa e Porto). Muitas vezes os portos algarvios ficavam na rota entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa ou vice-versa.

Para defesa desta atividade em relação à pirataria e ao corso, quer moura quer de outros treinos peninsulares e de França, desde o tempo de D. Dinis no Algarve circulava uma esquadra portuguesa, que deveria ter a sua base em Tavira.

Quanto ao artesanato, dos mesteres necessários à vida das pessoas e à restante atividade económica, terá que ser reconhecido o papel dos moleiros dos moinhos de vento ou de água (rodízios), bem como, numa atividade de tecnologia parecida, a dos pisoeiros que trabalhavam a lã em instalações do tipo dos moinhos de água, e que também ficam reservadas para o rei no foral. Depois temos as atividades comuns nas comunidades medievais (e não só) – carpinteiros, ferreiros, sapateiros, oleiros, albardeiros e seleiros, pedreiros, etc. Alguns destes ofícios ainda hoje se mantém na toponímia de Loulé (oleiros, sapateiros) sendo conhecida a grande tradição na antiga vila da existência de muitos sapateiros.

Concluindo, o concelho de Loulé, pela sua dimensão e importância no contexto do Algarve medieval, representava um paradigma do que era a economia regional da época. Era importante a sua produção agrícola, mas também de carne, do interior, mas também dos artigos do litoral, de que se alimentava um próspero comércio interno e externo que se desenvolveu ao longo dos séculos, em articulação com o resto do país e das regiões envolventes, quer do Mediterrâneo, quer do atlântico, sabendo adaptar-se aos aspetos conjunturais, nomeadamente da época dos Descobrimentos.

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Notas:

  1.  ANTT – Chancelaria D. João I – livro II – pág. 200
  2. Arençada = unidade de medida do campo que se traduz pela dimensão de área lavrada por uma junta de bois durante um dia = jeira).
  3. ANTT – Chancelaria de D. Pedro I – fl. 72
  4. Ou adoveiro, conforme era referido nas atas;
  5. ANTT – Chancelaria de D. Dinis – Livro I – pág. 54 v
  6. ANTT – Chancelaria de D. Dinis – Livro II – pág.53
  7. ANTT – Chancelaria de D. João I – Livro II – pág. 200
  8. Alberto Iria – obra citada – pág. 392.
  9. Açougue – palavra de origem árabe, com o significado de mercado, feira, que depois ficou mais ligado à venda de carne. As fangas estavam ligadas à venda de cereais ou pão.
  10. Porto e povoação desaparecidos com o terramoto de 1755, um porto interior na zona poente da Ria Formosa, nos limites do concelho de Loulé com o de Faro.

Bibliografia:

ACTAS das VEREAÇÕES de LOULÉ – Vol. I – Câmara Municipal de Loulé – 1984

BEIRANTE, Ângela –  Comunicação sobre “Relação entre o Homem e a Natureza nas mais antigas posturas da Câmara de Loulé (séc. XIV) – Actas do Encontro Algarve/ Andaluzia de História Medieval – Loulé – 1984

FONSECA, Luís Adão da, e PIZARRO, José Augusto P. S. M. –  Comunicação sobre “Algumas considerações sobre o comércio externo algarvio na época medieval“ –  Idem  – ibidem

HERCULANO, Alexandre“Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines” – Vol. I – Lisboa, 1856 – pág. 706-708 – transcrito de: ANTT – Doações de D. Afonso III – Livro I – fl. 82v-83v (Foral de Silves, Faro, Loulé e Tavira);

– IRIA, Alberto“O Algarve nas Cortes medievais portuguesas – Lisboa 1982;

MARQUES, A.H. Oliveira “Introdução à História da Agricultura em Portugal “– Lisboa 1968;

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