Como vimos atrás, após a reconquista, entre 1239 e 1249, do território algarvio, e depois de resolvida a querela de soberania com o Reino de Castela e Leão, foi altura de iniciar o processo de exercício de soberania, com a outorga das cartas de foral (em 1266) às principais povoações do Algarve.
Era importante organizar a defesa do território, e povoá-lo de gente cristã para sobrepor à população mourisca que por cá ficara, naturalmente, porque a maior parte aqui tinha nascido.
Mas também era necessário afirmar a nova fé – o Cristianismo – num território onde havia muitos séculos deixara de ser dominante. Efetivamente, ainda nos tempos do império romanos, algures entre 303 e 306 d.C., a região formara uma diocese cristã, com sede em Ossónoba (Faro), cujos bispos ficaram famosos em várias situações. Sabe-se, por exemplo que o bispo Vicente, primeiro prelado de que há registo, participou no Concílio de Elvira (séc. XIV), que foi a primeira grande reunião de todo o clero peninsular, com cerca de 19 bispos1.
Nos séculos seguintes a diocese terá continuado no período final do império romano, no período visigótico e mesmo muçulmano, neste caso naturalmente numa situação de segundo nível, porque os vencedores tinham uma outra religião. Como acontecia nestes casos de populações cristãs organizadas, relativamente bem toleradas sob o domínio muçulmano, formava-se uma comunidade moçárabe (tal como vários séculos depois as populações muçulmanas organizadas sob o domínio cristão formavam comunidades mudéjares).
Mas no período visigótico e muçulmano o topónimo Ossónoba fora dando lugar à designação de Santa Maria, depois de Santa Maria al-Harune, e mais tarde simplesmente a Harune, sendo que este último nome muçulmano provém do governante do séc. X, Ibne Harune, de onde deriva Farão / Faro.
Em 1189 D. Sancho I, ao conquistar Silves, recriou a diocese, mas de acordo com a tradição eclesiástica não se podiam criar novas dioceses onde nunca existira outra, e assim Silves não tinha esse direito, pelo que teve que ser oficialmente recuperada a de Ossónoba, mas já não em Faro, mas em Silves2. Nomeou seu bispo o clérigo flamengo Nicolau, que viera na expedição da 3ª Cruzada que participou na conquista. A recriada diocese ficava na dependência metropolitana3 de Braga, o que levantaria outro problema, porque Ossónoba tinha pertencido à província eclesiástica lusitana ou emeritense, com metrópole em Mérida. Província essa que, entretanto, passara para Santiago de Compostela. Embora Silves viesse a ser perdida novamente para ao Muçulmanos, logo em 1191, a questão teórica durou ainda alguns anos.
Só depois da reconquista definitiva do Algarve, em 1249, como já vimos noutro artigo, houve condições para o restauro definitivo da diocese, embora no contexto da querela entre os Reinos de Castela e Leão e o de Portugal pela soberania do Algarve. Foi em 1253 que o rei de Castela e Leão, Afonso X, o Sábio, nomeou o primeiro bispo para Silves, o frade dominicano D. Roberto, com doação perpétua de alguns bens imóveis que o rei de Portugal já tinha em seu poder. Já vimos em anterior artigo a questão também gerada por esta nomeação e que se resolveu provisoriamente no Tratado de Badajoz de 1267, com a integração do bispado de Silves na província eclesiástica de Sevilha. Durante décadas houve grande interação entre os dois bispados, com clérigos de Silves a participar frequentemente em atividades em Sevilha, embora tivesse havido algumas tentativas de Silves se eximir da sua dependência em relação a Sevilha, como terá acontecido em 1310, quando o arcebispo D. Fernando Gutierrez Tello exarou uma sentença de excomunhão sobre o bispo de Silves, D. João, porque este não cumpria com seus deveres de sufragâneo, referindo-o como “…episcopus silvensis, indevotus suffraganeus noster…”. Já em meados do século, em 1352 parecem estar as coisas mais calmas, com a participação do bispo de Silves, D. Vasco, o seu mestre escola, D. Martim Gil, que também era cónego de Sevilha, e outro cónego, Arias Rodrigues, no primeiro concílio provincial que houve em Sevilha depois da restauração da sua igreja.
Como também já vimos, esta situação veio a terminar em 1394, depois de no ano anterior o Papa Bonifácio IX, em pleno Cisma do Ocidente e a pedido do rei D. João I, ter erigido a igreja de Lisboa como arquidiocese e metropolitana, e para a qual transitou Silves.
No entanto, logo após a reconquista do conjunto de povoações algarvias, em 1251, estima-se que o arcebispo de Braga, D. João Viegas, que acompanhava o rei D. Afonso III, tenha sido o responsável pela encomenda inicial do trabalho de construção das primeiras igrejas nessas mesmas povoações, para o que incumbiu os frades dominicanos dessa tarefa.
Naturalmente seria depois do primeiro acordo entre as partes, e depois da outorga dos forais, em 1266, às principais povoações algarvias, que o trabalho se teria iniciado. Em regra, não foram obras de raiz, mas sim adaptadas, “purificadas” e reconstruídas as anteriores mesquitas maiores que assim se tornaram nas suas igrejas principais. Sendo Silves a sede do bispado, é natural que tivesse honras de igreja principal, dando-se início em 1277 a profundas obras de (re)construção, que deram forma à sua catedral.
Como era tradicional, mesmo em épocas de transição de uma religião para outra, havia uma continuidade do espaço sagrado dentro da povoação, isto é, a nova religião estabelecia o seu templo no mesmo local (e normalmente na mesma estrutura) em que existira o templo da religião anteriormente dominante. A transição dependia sempre do grau de violência no ato da conquista e de destruição do símbolo religioso da civilização anterior. Quando havia maior ódio entre as partes, naturalmente a destruição era maior, e mais motivos havia para arrasar a estrutura existente.
O que aconteceu em Silves podemos considerar que aconteceu nas restantes localidades que aqui iremos focar.
Em Silves, nestas circunstâncias, a mesquita –mor da cidade foi substituída pela igreja cristã que passou a ser designada como Santa Maria de Silves (mais tarde Nossa Senhora da Conceição), numa alteração muito comum nas terras recém-conquistadas aos Mouros. Ao longo dos séculos ficou mais conhecida como a Sé de Silves, já que em Portugal, embora exista na prática (consubstanciada na cadeira – cathedra – do bispo nessa igreja) não se aplica comummente a designação de catedral, ao contrário da restante Europa.
A construção da igreja terá durado bastante tempo, até bem dentro do séc. XV, com a planta e as formas arquitetónicas e decorativas a seguir as linhas da arte gótica, evidenciando uma maior complexidade na sua cabeceira e transepto, tendo as três naves um aspeto mais austero (como evidenciou o Prof. Mário Chicó), separadas por robustas colunas de perfil oitavado em pedra local avermelhada (o grés de Silves). O portal principal está inserido num alfiz (elemento retangular englobante) em pedra do mesmo tipo, com um grande arco quebrado composto por arquivoltas dispostas em degraus, e capitéis influenciados pelos do Mosteiro da Batalha.
No aspeto geral tem uma monumentalidade e apresentação interior e exterior digna da catedral da diocese recém restabelecida.
Na catedral foi inicialmente sepultado o rei D. João II (que morreu em Alvor) no ano de 1495, até os seus restos mortais terem sido transferidos definitivamente para o Mosteiro da Batalha em 1499.
No séc. XVI, em 1577, o famoso bispo e humanista D. Jerónimo Osório fez transferir a sede da diocese para Faro, com a justificação de se estar a tornar a cidade bastante insalubre, devido ás águas paradas do rio Arade4. A igreja manteve a sua categoria de catedral, mas a sua influência naturalmente deixou de ser a mesma, o que de algum modo aconteceu com a cidade no seu todo, pelos séculos seguintes.
Situação inicial parecida teve também a igreja de Santa Maria de Faro (mais tarde de Nossa Senhora da Assunção), construída também no mesmo período, também onde antes estivera a mesquita-mor da povoação e eventualmente o primeiro templo cristão da velha Ossónoba. Desta fase inicial já pouco resta, para além da sua grande torre com arcos quebrados, que também serve de galilé, e alguns elementos no interior. As obras ao longo dos séculos e a necessidade de lhe dar uma maior imponência devido a ter-se tornado catedral no séc. XVI, alteraram significativamente a sua matriz gótica original, com transepto e três naves.
O prior de Santa Maria de Faro foi um dos 22 clérigos mais representativos das instituições religiosas da época que, em 12 de novembro de 1288, em Montemor-o-Novo, solicitou ao Papa Nicolau IV a criação em Portugal de um Estudo Geral (Universidade), prometendo o seu apoio para o custear, e que veio a ter a sua concretização por D. Dinis em 1290.
O mesmo se aplica à igreja de Santa Maria do Castelo, em Tavira, dedicada a Nossa Senhora dos Mártires, que foi a primeira destas povoações a ser reconquistada e por isso eventualmente a primeira a ver a sua mesquita-mor transformada em igreja. Aqui repousam os restos mortais dos sete cavaleiros cristãos que morreram às mãos dos Mouros numa emboscada que precedeu a conquista da vila pelas tropas do Mestre D. Paio Peres Correia (em 1239), cujo corpo também ali repousa.
A igreja sofreu graves danos com o terramoto de 1755, testemunhando-se que apenas ficou intacta a capela-mor original, tendo sido mandada reconstruir ‘à moderna’ pelo famoso bispo do Algarve D. Francisco Gomes do Avelar, que a sagrou novamente em maio de 1800, pelo que também restam poucos elementos góticos iniciais, para além da citada capela-mor e o portal principal.
Também a igreja de S. Clemente de Loulé foi construída entre a segunda metade do séc. XIII e inícios do séc. XV, sendo a única delas com um orago diferente de Santa Maria, não se conhecendo com exatidão a razão desta atribuição a um dos primeiros papas de Roma, pensando–se que teria a ver com o dia da conquista da vila (o que seria a 23 de novembro), embora não seja plausível a demora de oito meses desde a conquista de Faro, que sabemos que foi em março de 1249. Também é um templo de matriz gótica, de três naves, separadas por arcos quebrados, sem transepto, numa superfície quase quadrada. O pórtico principal é em ogiva e ostenta uma pequena espada da Ordem de Santiago. Tal como as outras, foi construída sobre a estrutura da antiga mesquita maior da povoação e, na parte superior da parede lateral norte, ainda se podem observar vestígios de uma janela de arco em ferradura árabe, descoberta há algumas décadas. Segundo a ficha do monumento da DGPC esta igreja, não sendo a mais monumental, é a mais típica das construções góticas algarvias e a menos alterada. Estas características permitem inseri-la no amplo movimento gótico de índole paroquial, que, adotando um simplificado modelo de templo mendicante, cobriu grande parte da paisagem portuguesa dos séculos XIII a XV.
O primeiro prior de Loulé conhecido foi Pedro Afonso, em 1263, e ao longo das décadas seguintes seguiram-se algumas figuras importantes ligadas à corte do rei ou da Ordem de Santiago.
O prior de S. Clemente de Loulé também participou na petição para a criação em Portugal de um Estudo geral em 1288, tal como o de Faro, o que também revela a importância económica das rendas desta igreja.
No dia 4 de dezembro de 1298, a igreja de S. Clemente passou para a Ordem Militar de Santiago por escambo (troca) feito entre o rei D. Dinis e o mestre da referida Ordem. Esta situação terá inspirado a colocação da espada de Santiago nas armas de Loulé, o que é um erro, porquanto foi só a igreja que pertenceu àquela Ordem Militar.
Embora o padroado das igrejas de Tavira, Faro e Loulé tivesse sido entregue à Ordem de Santiago, os seus rendimentos causaram atritos entre o bispado e a Ordem, pelo que logo em 1299 (Loulé) e 1301 (Faro e Tavira) se acordou na divisão a meias dos seus rendimentos, entre as duas partes.
Mais ou menos da mesma época foram surgindo nestas localidades alguns conventos, especialmente da Ordem Franciscana que também tinham uma matriz gótica.
São, portanto, estas igrejas as primeiras do Algarve cristão da época medieval e que ainda hoje são monumentos arquitetónicos e culturais de grande relevo regional e declarados monumentos nacionais ou de interesse público desde a primeira metade do séc. XX.
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Notas:
1 Ver Anexo: I – Os bispos de Ossónoba.
2 Ver Anexo: II – Os bispos de Silves.
3 Em teoria, o território eclesiástico organiza-se em províncias eclesiásticas (as arquidioceses, onde pontifica um arcebispo), às quais pertencem as dioceses (bispos). Atualmente esta dependência na prática já não se usa, estando bispos e arcebispos ao mesmo nível, dependentes de Roma.
4 Ver Anexo: III – Os bispos de Faro.
Bibliografia:
– CAMACHO, Isabel Montes Romero – Univ. Sevilha – Comunicação nas Jornadas Luso -Espanholas de história Medieval
– LOPES, João Baptista Silva – “Memórias para a História Eclesiástica do Bispado do Algarve” – Academia Real das Ciências – Lisboa 1848
– MATTOSO, José – História de Portugal – Vol. II – Ed. Círculo de Leitores – 1993 – pág. 133-139
– OLIVEIRA, Luís Filipe – “A Conquista, o padroeiro e os priores de Loulé” – Univ. Algarve/IEM
– RIBEIRO, Ângelo – in “História de Portugal” Coordenação de Damião Peres – Vol. II – Barcelos – 1929; pág. 251/273;
– VASCONCELOS, Damião Augusto – “Notícias Históricas de Tavira” – Liv. Lusitana – Lisboa -1937
Anexo: Os Bispos do Algarve*
I: Os Bispos de Ossónoba referidos em documentação (e sua data):
– Vicente (306-314);
– Idácio, o Claro (380)
– Pedro (589)
– Saturnino (653)
– Exarno (666)
– Belito (683)
– Agripio (688, 693)
II: Os Bispos de Silves (33):
– Frei Domingos Soares (1292–1297)
– João (I) Soares Alão (1297–1310/c. 1310)
– Frei Álvaro (I) Pais (1333–1352)
– Martinho (I) de Zamora (1371–1379), depois arcebispo de
– Pedro (II) (1383)
– Paio Gonçalves de Meira (1384)
– João (III) Afonso de Azambuja (1389–1390), também bispo do
Porto, de Coimbra e de Lisboa e cardeal
– Martinho (II) Gil (1391–1401), primeira vez
– João (IV) Afonso Aranha (1404–1407)
– Martinho (II) Gil (1407–1409), segunda vez
– Fernando (I) da Guerra (1409–1414), depois bispo do Porto e arcebispo de Braga
– Garcia (II) de Menezes (1418–1421)
– Álvaro (II) de Abreu (1421–1429)
– Rodrigo (II) Dias ou Rodrigo Diogo (1441-?)
– Álvaro (III) Afonso (1453–1467), depois bispo de Évora
– João (VI) de Melo (1467–1480)
– Jorge da Costa (1481–1485)
– João (VII) Camelo (1486–1501)
– Fernando (II) Coutinho (1501–1538)
– Manuel (I) de Sousa (1538–1545)
– João (VIII) de Melo e Castro (1549–1564)
– Jerónimo (I) Osório (1564–1577)
III: Os Bispos de Faro (33):
– Jerónimo Osório (1577–1580)
– Afonso (II) de Castelo Branco (1581–1585), depois bispo de Coimbra e vice-rei de
– Jerónimo (II) Barreto (1585–1589)
– Francisco (I) Cano (1589–1594)
– Fernando (III) Martins de Mascarenhas (1595–1616)
– João (IX) Coutinho (1617–1626)
– Francisco (II) de Menezes (1627–1634)
– Francisco (III) Barreto (I) (1634–1649)
– Francisco (IV) Barreto (II) (1671–1679)
– José (I) de Menezes (1679–1685)
– Simão da Gama (1685–1703), depois arcebispo de Évora
– António (I) Pereira da Silva (1704–1715)
– José (II) Pereira de Lacerda (1716–1738)
– Fr. Inácio (I) de Santa Teresa (1741–1751)
– Fr. Lourenço de Santa Maria e Melo (1752–1783)
– André Teixeira Palha (1783–1786)
– José (III) Maria de Melo (1786–1789)
– Francisco (V) Gomes de Avelar (1789–1816)
– Joaquim de Sant’Ana Carvalho (1820–1823)
– Fr. Inocêncio António das Neves Portugal (1824)
– Bernardo António de Figueiredo (1825–1838)
– António (II) Bernardo da Fonseca Moniz (1844–1854)
– Carlos Cristóvão Genuês Pereira (1855–1863)
– Inácio (II) do Nascimento Morais Cardoso (1864–1871), depois Patriarca de Lisboa
– António (III) Mendes Belo (1884–1908), depois Patriarca de Lisboa
– António (IV) Barbosa Leão (1908–1919)
– Marcelino António Maria Franco (1920–1955)
– Fr. Francisco (VI) Fernandes Rendeiro (1955–1966), depois bispo de Coimbra
– Júlio Tavares Rebimbas (1966–1972)
– Florentino de Andrade e Silva (1972–1977)
– Ernesto Gonçalves Costa (1977–1988)
– Manuel (II) Madureira Dias (1988–2004)
– Manuel (III) Neto Quintas (desde 22 de Abril de 2004)
*Listagem retirada da obra citada de J. B. Silva Lopes (até 1848); e do site
https://pt.wikipedia.org/wiki/Diocese_do_Algarve