Em 1297, o rei D. Dinis, a partir de Alcobaça, mandou exarar um documento que serviria o propósito de povoar um lugar do termo de Loulé que já era conhecido como Quarteira, e já fora citado no foral daquela vila explicitamente a propósito dos moinhos e das herdades que nele existiam, e implicitamente pela pesca da baleia que os muçulmanos já desenvolviam na costa algarvia, conjunto este de bens que o rei reservara para si e seus sucessores. As herdades (no plural) deviam incluir aquela que ficaria a ser conhecida como quinta ou morgado de Quarteira que se manteve como reguengo até 1413, data em que viria a ser alvo de um escambo (troca) de D. João I com um fidalgo que que é localizado em Loulé em 13781 e que possuía anteriormente um senhorio em Cernache dos Alhos (Coimbra), de seu nome Gonçalo Nunes Barreto, cuja família viria a deter esse morgado até ao séc. XIX.
É um texto relativamente pequeno, já escrito em Português, depois de até ao reinado anterior se ter usado exclusivamente o Latim para os documentos oficiais da corte, e que transcrevo de seguida2:
“Dom Denjs pela graça de deus Rey de Portugal e do Algarve a quantos esta carta uirem ffaço saber que martin mercham ueo a njm e pediu-me per mercee que eu lhy desse o meu logar que chamam quarteira com todos seus termhos per a ssi e pera cinquoenta pobradores omeõs quem hy aduria e lhes desse afforo de lixboam E eu querendo-lhes fazer graça e mercee do a elles e a todos seus sucessores qual que elle ueerem o dito seu logar de Quarteira com todos seus termhos que o provoarem ao foro de lixboam E elles e todos seus sucessores deuem fazer a mjm e a todos meus sucesores cumpridamente todolos foros e todalas cousas que som contehudas e no dito foro de lixboam e retenho pera mjm e peratodos meus sucessores os padroados das Igrejas e de moynhos feitos e por fazer Outrossi os açougues Em testemunho desta cousa dey ende ao dicto martin mercham e aos povradores que ao dicto logar veeren esta mynha cartam Datam em Alcobaça quinze dias de nouembro El Rei o mandou Franciscum annes o fez Era 1335 anos” [1297 da era de Cristo].
Para mais fácil leitura, transcrevo ainda em grafia atualizada:
“Dom Dinis pela graça de Deus Rei de Portugal e do Algarve a quantos esta carta virem faço saber que Martim Mercham veio a mim e pediu-me per mercê que eu lhe desse o meu lugar que chamam Quarteira com todos seus termos para si e para cinquenta povoadores homens que aí levaria e lhes desse foro de Lisboa. E eu querendo-lhes fazer graça e mercê dou a eles e a todos seus sucessores qual que ali vierem o dito seu lugar de Quarteira com todos seus termos que o povoarem ao foro de Lisboa. E eles e todos seus sucessores devem fazer a mim e a todos meus sucessores cumprindo todos os foros e todas as coisas que são contidas no dito foro de Lisboa e retenho para mim e para todos os meus sucessores os padroados das Igrejas e de moinhos feitos e por fazer. Outrossim os açougues. Em testemunho desta coisa dei ainda ao dito Martin Mercham e aos povoadores que ao dito lugar vierem esta minha carta. Data em Alcobaça aos quinze dias de novembro. El Rei o mandou, Francisco Anes o fez. Era 1335 anos” [1297 da era de Cristo].
Pelo que se depreende do texto, a iniciativa foi do tal Martim Mercham, que desejava vir a ocupar com mais cinquenta homens (a que corresponderiam mais as respetivas famílias) este espaço do litoral do concelho de Loulé, para atividades que se presumem ligadas ao mar e/ou à agricultura. Nada refere sobre a quinta de Quarteira, pelo que essa continuaria como reserva do rei.
Este documento também é conhecido como foral de Quarteira, mas não veio a criar um novo concelho nem faz referência a Loulé, ao qual pertencia. Visa o mesmo objetivo de povoamento de zonas desocupadas ou até aí ocupadas pelos Mouros, mas parece não ter tido na prática a consequência da criação de uma determinada zona administrativa (termo / concelho), pelo que não é verdadeiramente considerada uma carta de foral, preferindo assim os historiadores chamar a este documento uma carta de povoamento3.
Tanto quanto se sabe, esta iniciativa não teve grandes consequências sequer a nível do povoamento desta localidade. Isto é, não se veio a formar uma povoação de dimensão significativa junto à costa, talvez porque fora os terrenos do morgado não houvesse solo fértil para a agricultura, e a atividade piscatória livre não tivesse rendimentos suficientes para o sustento de uma população significativa. Por outro lado, a vida junto à costa não era fácil ao longo dos séculos seguintes, devido à pirataria moura que frequentemente assaltava as reservas agrícolas e levava como reféns pessoas que tomava de surpresa para serem posteriormente resgatadas. Isso era mais frequente no final do verão, quando as colheitas (nomeadamente de figos) estavam disponíveis, e justificaria a existência em Quarteira de uma torre de vigia, articulada com a Torre da Vela em Loulé, que só foi destruída em meados do séc. XX.
Se efetivamente a iniciativa tivesse tido êxito, logo na altura, eventualmente poderia ter-se vindo a criar um novo concelho em Quarteira e arredores, o que de algum modo iria colidir com os interesses do reguengo e posterior morgado local.
O certo é que Quarteira se manteve até ao início do século passado como uma pequena localidade piscatória que só as últimas gerações viram crescer significativamente, tendo sido elevada à categoria de vila em 1984, e tornando-se cidade em 1999.
Notas:
1 Atas das Vereações de Loulé – vol. I – Primavera de 1378 – Ed. CML – 1984
2 ANTT – Chancelaria de D. Dinis – Liv. I – fl. 35. Publicada por João Carlos Santos em https://www.avozdoalgarve.pt/detalhe.php?id=19931
3 Já Alexandre Herculano considerava que os forais designavam exclusivamente os documentos que serviam de base jurídica para a criação de concelhos.